Nem comida consigo, polícia não deixa, diz sem-teto com supeita de covid-19
"Estou há dias com febre e falta de ar, mas a AMA (Assistência Médica Ambulatorial) da Sé não quis me atender. Nem doação de comida a gente consegue, porque a polícia não deixa", lamenta Alex Paulo Moreira, 49, há dois anos vivendo na rua.
"Sem apoio da prefeitura" de São Paulo, diz, ele se juntou a centenas no Largo São Francisco, no centro da capital paulista, para receber ajuda de entidades de serviço voluntário que alimentam essas pessoas e constatam: a população de rua em São Paulo explodiu na pandemia de covid-19.
Moreira conversou como o UOL enquanto aguardava atendimento médico em uma tenda utilizada pelo MSF (Médicos Sem Fronteira), entidade que raramente atende no Brasil.
"A cada quinta-feira a gente examina de 700 a 800 moradores de rua. Pelo menos 60 estão doentes e 10% com sintomas de covid-19", relata a enfermeira Tatiana Chiarella, 35, responsável por organizar os atendimentos.
Uma fila se forma em frente à tenda. Os voluntários marcam a distância necessária de dois metros entre eles, enquanto fazem a triagem para identificar os sintomas. Os enfermeiros avaliam a temperatura, o nível de oxigênio, a respiração e os batimentos cardíacos. Quem apresenta algum sintoma ganha uma máscara e aguarda atendimento médico em uma cadeira.
"Nos casos leves, a recomendação é para ficar em casa, mas como eles estão em situação de rua a gente encaminha os casos graves para um isolamento preparado pela prefeitura, com cem camas em um centro esportivo na Lapa (zona oeste), onde ficam por 14 dias", diz Chiarella. "A ideia é tirar da rua para reduzir a transmissão e mortalidade."
Se os sintomas estiverem associados a uma respiração rápida, pode ser indício de covid-19. O médico infectologista faz um exame mais detalhado, escuta o pulmão e manda para o hospital em uma ambulância que temos aqui
Tatiana Chiarella, enfermeira do Médicos Sem Fronteira
Na rua desde os 15 anos, Augusto Roque de Castro Júnior, 26, procurou a tenda porque ficou preocupado quando ouviu falar sobre o novo coronavírus. "Acho que vão me mandar para o abrigo. Estou com tosse seca, dor no corpo e falta de ar. Se não fossem eles, eu não teria a quem recorrer, porque é difícil a prefeitura atender a gente."
População de rua dispara, dizem voluntários
O MSF utiliza uma tenda em frente à Igreja São Francisco de Assis cedida pelos franciscanos do Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade), que já distribuíam 700 marmitas todos os dias à população de rua. Mas desde o início da pandemia do novo coronavírus, a procura por ajuda disparou, e a entidade franciscana precisou se reinventar da noite para o dia.
"Depois do coronavírus, os pedidos de ajuda aumentaram tanto que não estávamos dando conta", recorda Fábio José Garcia Paes, coordenador de Desenvolvimento Institucional do Sefras. Os franciscanos, então, saíram em busca de voluntários e iniciaram um cadastro para entender o perfil de quem passou a pedir ajuda.
Em pouco tempo, o número de marmitas distribuídas saltou de 700 para 4 mil, e as 500 famílias em situação vulnerável que recebiam cestas básicas hoje somam 5 mil, relata o franciscano.
"Apenas no bairro do Pari, no centro, são quase 2 mil famílias vivendo em situação precária, em cortiço ou no chão das fábricas de roupa, em situação de semi-escravidão", conta Paes.
Essas pessoas chegam a nós dizendo que estão sendo despejadas, que o dinheiro para o aluguel não chega mais e que estão indo para as ruas. Quem mora em ocupação vivia de emprego informal, mas agora, sem renda, nos procura porque está passando fome.
Fábio José Garcia Paes, do Sefras
De acordo com o último censo da prefeitura, havia 24 mil moradores de rua em São Paulo em janeiro (a prefeitura não comentou se esse número aumentou).
Para o Sefras, esse número já mudou. "Obviamente que está subnotificado. A quantidade de pessoas em situação de rua ampliou com a pandemia da covid-19, porque aumentou demais a busca por alimentação e ajuda de quem tinha alguma moradia, mesmo que precária, e agora não tem mais."
Estratégia de guerra
Para dar conta da demanda, os franciscanos montaram "uma estratégia de guerra".
"Ocupamos a rua para atender mais pessoas e mais rapidamente. Transformamos sala em dormitório, recepção em cozinha e fomos em busca de voluntários", afirma o coordenador de Desenvolvimento Institucional do Sefras.
E eles vieram. Por muitos anos, 20 voluntários ajudavam a instituição; desde a pandemia, eles passaram a 190 fixos e 400 indiretos.
Um dono de restaurante que precisou fechar as portas ofereceu o fogão, juntou a família, e estão todos cozinhando mil marmitas por dia. Na Mooca, um grupo de chefes de cozinha também prepara quentinhas.
Em outra frente, oito empresas fazem campanhas internas pedindo ajuda. "Se o funcionário comprar uma marmita por R$ 4, a empresa compra mais duas", diz Paes.
Uma hamburgueria cedeu um caminhão para transportar a comida e montou pias portáteis para higienização na tenda. Um aplicativo de entregas incluiu o botão "Doe uma marmita do bem".
"Algumas famílias emprestam o carro para levar as cestas básicas", diz ele, e a Sefras conseguiu da Cruz Vermelha a doação de material de proteção aos voluntários e acompanhamento dos protocolos de segurança na organização dos espaços.
"Prefeitura não ajuda"
Segundo alguns moradores, é mais seguro encontrar ajuda entre as entidades.
"Eu acho um fracasso o atendimento da prefeitura aos moradores de rua na pandemia", diz Moreira, do início da reportagem, enquanto aguardava para ser atendido por um médico do MSF. "Quando soube do coronavírus, fui à AMA da Sé, mas me disseram que só atendiam quem já tinha a doença. Eu perguntei se não iriam me examinar, mas falaram que só tinha um médico e ia demorar oito horas."
Moreira pediu ajuda a um policial, que lhe recomendou a tenda dos Médicos Sem Fronteira. Ele diz que, por causa da pandemia, tenta evitar dormir nas ruas, mas a situação nos albergues "não é das melhores".
"A prefeitura não quer morador de rua tudo junto, mas querem enfiar todo mundo num buraco só. Ontem dormi no Albergue Prates (Bom Retiro). Estava lotado, que nem cadeia: beliche de ferro, só com colchão, sem cobertor e lençol. Luz e ventilador ligados pela noite toda", conta Moreira. "Falta álcool em gel e máscara. No banheiro, não tem papel higiênico, nem toalha. É desumano, ainda mais em uma pandemia."
Quando precisa comer, ele também prefere recorrer às marmitas do Sefras porque, diz, a GCM (Guarda Civil Metropolitana) não permite que eles recebam doações na rua.
Em frente ao Theatro Municipal, passou um carro de doação, a Guarda Civil mandou embora. Aí veio a Gaviões da Fiel doar comida na Sé. A gente parecia um bando de besta correndo atrás do carro, porque a viatura mandava correr. Morador de rua é gente também
Alex Paulo Moreira, 49
"A única coisa boa é essa tenda para tomar banho", diz ele, ao se referir à estrutura montada pela prefeitura em frente ao Largo São Francisco. "A gente tem dez minutos para usar banheiro e tomar banho."
Outro lado
Procurada, a Secretaria Municipal da Saúde afirma que que a AMA Sé "é um serviço que funciona de portas abertas (...) sem registro de falta de atendimento, e tempo médio de 15 minutos para o atendimento".
"Os pacientes com suspeitas de covid-19 são examinados, orientados e, dependendo da gravidade, encaminhados por ambulâncias próprias da AMA aos hospitais de referência."
Já a GCM diz que "não impediu a distribuição de alimentos ocorrida no entorno do Theatro Municipal, apenas orientou acerca dos veículos estacionados e aglomeração de pessoas".
"Representantes da GCM entraram em contato com os organizadores para esclarecer o mal-entendido e ainda se colocar à disposição", diz a Guarda em nota. "Quanto às ações na Sé, estas ocorrem com o objetivo de orientar para a necessidade de não formar aglomeração, seguindo as recomendações da OMS e autoridades de saúde."
A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social diz que "ampliou o atendimento às pessoas em situação de rua, inclusive aos diagnosticados com a Covid-19". São sete equipamentos com 594 vagas e funcionamento por 24 horas.
Em relação ao albergue Prates, "foram instalados dispensers de sabonete líquido, álcool em gel e suporte para papel toalha e são abastecidos periodicamente", diz. "Os beliches são higienizados, com troca de lençóis, fronhas e cobertores e as janelas abertas para arejar o ambiente."
Durante a pandemia, a secretaria afirma que ampliou a oferta de "refeições, banheiros, kits de higiene e orientações", com centro de convivência e oferta de 200 refeições tanto na região da Luz quanto no Cambuci, "com café da manhã, almoço e café da tarde para 200 pessoas."
O Serviço Especializado de Abordagem Social "realiza busca 24 horas por dia para identificar pessoas ou famílias em situação de rua e oferecer acolhimento na rede socioassistencial."
A prefeitura não comentou o provável aumento da população de rua na cidade.
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