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Djamila Ribeiro: Estado está financiando guerra de pobres contra pobres

Do UOL, em São Paulo

01/07/2020 12h02

Resumo da notícia

  • Djamila diz que nova segurança pública no Brasil precisa ser discutida com urgência
  • Ela diz que não há avanço sem políticas públicas que encerrem círculos de exclusão
  • Filósofa ressalta importância dos movimentos, mas diz que geração atual não verá efeitos
  • Djamila: Diferente do preconceito, o racismo tem relações de poder

Nas últimas semanas, não foram raras as imagens de violência policial flagradas em vídeos espalhados pelo Brasil. Para a filósofa e escritora Djamila Ribeiro, "as pessoas denunciarem mais é fruto desses movimentos históricos no Brasil. De fato, ela [violência] não está maior, está sendo gravada". Ela participou hoje do UOL Entrevista, conduzido pelos jornalistas Leonardo Sakamoto, colunista do UOL, e Paula Rodrigues, repórter de Ecoa.

Djamila defende que uma nova segurança pública brasileira seja discutida com urgência.

Os jovens negros no Brasil são os que mais morrem. Mas também, no Brasil, é a polícia que mais morre. E esses policiais, que são o braço do Estado, eles também na grande maioria vêm dos mesmos territórios daqueles jovens que eles estão matando. Então é o Estado financiando uma guerra de pobres contra pobres, de negros contra negros.

Por isso, ela diz, é fundamental discutir a desmilitarização e a descriminalização das drogas. "Um policial que comete um ato de violência, claro que a gente quer que ele responda por aquilo que ele fez, porém o Estado tem que ser responsabilizado por permitir esse tipo de ação nas periferias (...) É fundamental uma outra segurança que não seja pautada na repressão, nessa visão de criminalização das pessoas negras, sobretudo dos homens negros do Brasil."

A filósofa defende ainda que é necessário que o debate seja feito de uma maneira que a população entenda. "Muitas vezes fica no campo do academicismo. No geral, o brasileiro médio não entende essa discussão. É um país em que a gente tem programas de televisão, em emissoras de muita audiência, que ficam horas criando essa espetacularização das violências das polícias nas periferias."

A gente es num país extremamente colonial, violento. Não dá para ter mudanças de fato se a gente não tiver políticas públicas que encerrem círculos de exclusão. Não dá para ter avanço nesse país sem pensar em uma segurança pública que não seja pautada na repressão e no encarceramento em massa.

"Mudanças não serão imediatas"

Djamila relembra que o Brasil começou a considerar o racismo como um crime contra a humanidade na Conferência de Durban, em 2001, na África do Sul, se prontificando a reparar os danos causados pela escravidão. "Houve um levante interessante, mas que só foi possível as pessoas falarem sobre isso porque existiu um movimento que vem historicamente, sobretudo depois das cotas raciais, mais pessoas negras nas universidades, fazendo pesquisa. Tem aí uma resposta em relação a uma maior aderência esse debate."

"Nossa geração talvez não veja os benefícios disso. Sem nunca perder a perspectiva histórica, é um trabalho de formiguinha, de base, não se muda de hora para outra, mas é importante que esses temas estejam em evidência, e que as pessoas leiam de fato", complementa a filósofa.

A escritora diz que, no Brasil, o negro sempre foi retratado com como "malandro" e, até mesmo, de forma "animalizada". Isso, segundo ela, vai sendo naturalizado pela população, o que começa a gerar ódio de determinados grupos, usando muitas vezes um "humor que não tem nada de ingênuo".

"Se a gente for olhar desde o 'black face', o Show dos Menestreis, como os negros eram representados, sempre estereotipados com a boca grande e vermelha, ou comparados a animais. Então há aí uma certa linguagem que vem muito depois das teorias racistas, do racismo cientifico, que vieram para tentar justificar essa suposta inferioridade, essa animalização das pessoas negras, e a gente vê como isso vai sendo perpassado", ela diz.

Um exemplo de como os estereótipos e a estrutura racial permanece forte no Brasil pôde ser observado na demissão do ex-ministro da Educação Carlos Alberto Decotelli. "É sempre importante frisar que estamos em lados opostos. É claro que a gente não apoia esse governo e tudo o que ele representa, porém não tem como a gente não observar que existem ministros que fraudaram também seus currículos e continuam ocupando seus cargos. Tem um outro peso quando são homens brancos que fraudam e não há a mesma cobrança."

Colorismo tenta dividir comunidade

Para Djamila Ribeiro, o chamado colorismo, que aponta as diferenças entre pretos de pele mais clara e mais escura, "é uma invenção colonial, de fato, para criar uma rivalidade entre a população negra".

"No Brasil, por conta desse mito da democracia racial, ser mais fenótipo não genótipo, ficou muito mais complexa. Dizem que somos todos mestiços, morenos, mulatos, uma série de denominações para não assumir ascendência negra", explicou.

Ela disse que autodeclarados negros vêm refutando essa falsa ideia de quem é negro no Brasil. "A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado. Então, a sociedade brasileira sabe muito bem quem é negro. Na hora de discriminar, isso sempre foi sabido", exemplifica.

A filósofa ponderou que existem diferenças e vantagens sociáveis de negros de pele mais clara e de negros de pele escura. "Os negros que sempre têm mais destaques, a questão da tolerância é maior de negro de pele mais clara. Mas nós não podemos deixar que essas diferenciações nos dividam mais uma vez", defende.

"Não de uma maneira esvaziada, não reconhecendo a negritude de negros de pele mais claro, dizendo quem é negro e quem não é, é desrespeito a todas as gerações. Quanto mais escuro se é no Brasil, pior tratado seremos, mas não usemos isso. Isso não pode ser reproduzido dentro da nossa comunidade."

Pessoas confundem racismo com preconceito

Djamila diz que, no geral, as pessoas têm dificuldade de entender o que é racismo. "Confundem o racismo com preconceito. Preconceito existe entre todos os grupos. As pessoas dizem: 'Ah, eu fui chamado de branquelo na escola, eu sofri racismo'. Na verdade, é chato ser chamado de branquelo e tudo mais, mas isso não é racismo. Para haver racismo deve haver relações de poder. A gente está falando de sistema de opressão."

"O fato de ser chamado de branquelo não retira os seus privilégios de fazer parte do grupo que é o grupo está no topo da pirâmide social. O branco não pode ser vitima de racismo, uma vez que está no topo e historicamente é beneficiado por uma estrutura racista. Não pelo fato de ser branco. A mulher branca sofre opressão por ser mulher numa sociedade machista, não por ser branca."

Lugar de fala

Djamila ressalta que as pessoas brancas também precisam se engajar na luta antirracista e que todos têm lugar de fala. "É fundamental que as pessoas brancas discutam lugar de fala para não naturalizar seus privilégios, entender que ele foi construído a partir da opressão de outros grupos e para entender a responsabilidade em também compor essa luta."

O lugar de fala, infelizmente, tem muitas confusões sobretudo nas redes sociais. As pessoas entendem às vezes o lugar de fala como interdito, ou como desculpa para não agir, 'não é o meu lugar de fala, então eu não vou agir', quando todo mundo tem lugar de fala. A gente está falando de locus social.

"O primeiro passo é entender as origens sociais da desigualdade. Mito da democracia racial de que aqui não há racismo, essa ideia romântica da raça. Criou uma certa neurose, em que as pessoas cultuam a cultura brasileira, que vem da população negra, como samba, mas não se mobiliza quando essa população sofre", diz.

"Racismo é como um crime perfeito, todo mundo sabe que existe, mas ninguém é racista. O Brasil por mais que não tenha apartheid legal é extremamente segregado com população negra sofrendo historicamente. É um problema da sociedade brasileira", afirma.