Moradores de rua sentem chegada do frio e relatam mortes de vizinhos em SP
A onda de frio que atingiu São Paulo causou a morte de moradores de rua. Diante da expectativa de mais uma noite fria, a reportagem do UOL foi às ruas na noite de ontem ouvir relatos de pessoas que conheciam as vítimas e como elas têm enfrentando a situação.
Por volta das 18h, quando os termômetros de rua registravam 17ºC, começou a distribuição de comida no largo São Francisco, no centro de São Paulo. As pessoas também recebiam cobertores e kits de higiene com máscara, sabonetes e álcool em gel para prevenção à covid-19.
O objetivo é tentar evitar quem mais um morador de rua morra de frio. Segundo algumas organizações, já foram cinco até agora (três na praça da Sé, um na região da 25 de março e um perto da rodoviária do Tietê). A Secretaria de Segurança Pública até a tarde de sábado, confirmava apenas dois casos.
Segundo censo da Prefeitura de São Paulo, divulgado em 2019, 24 mil pessoas vivem em situação de rua na capital. Do total, menos de 12 mil estavam abrigadas em instituições, como albergues.
Desabrigada em Brumadinho, sem-teto em São Paulo
A desempregada Grace Kelly, 37, que mora em uma ocupação na avenida São João, chegou atrasada com os cinco filhos — o mais velho, de 10 anos, e a mais nova, de cinco meses, dormia em um carrinho de bebê, doado. "Cheguei tarde. Os meninos têm três cobertores só. Soube que estavam distribuindo e resolvi vir", disse.
A reportagem procurou o Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade), pois havia sido informada que o excedente de cobertores, se houvesse, seria entregue para a entidade. Em seguida, um frei trouxe quatro cobertores para Grace, que afirma ter sobrevivido ao desastre ambiental de Brumadinho (MG), em janeiro de 2019, que destruiu sua casa e seu casamento.
"Meu marido disse que iria para a casa da mãe dele e que eu me virasse com as crianças", conta.
Ela não sabe dizer qual foi a temperatura mais fria do final de semana passado. "Não olho para essas coisas, só sei que foi muito frio", diz ela, que está sobrevivendo do auxílio emergencial e conta que está na ocupação desde abril.
Dorme na Sé para trabalhar
Às 19h, o termômetro da praça da Sé registrava 16ºC. A autônoma Kelly Keiko Maruya, 44, mora de aluguel em Itaquaquecetuba (Grande São Paulo), com a filha de 3 anos e o marido, que trabalha catando latinhas. Mas, desde abril, ela passa a maior parte do mês na capital, numa barraca de camping, que lhe serve de moradia e ponto comercial. Ela vende aparelhos de cortar cabelo e cosméticos.
Viúva, ela recebe pensão do primeiro marido e, por isso, não recebe o auxílio emergencial. Como a situação econômica em Itaquaquecetuba é pior que em São Paulo, desde abril ela passa a maior parte do mês na barraca e volta até a casa dela uma vez a cada 15 dias para lavar roupas.
Com as vendas e as latinhas, o casal compra a comida especial para a filha, que tem um problema congênito no fígado, e paga o aluguel em Itaquaquecetuba.
O último fim de semana foi de muito frio e chuva. Para não chover dentro da barraca, a casa improvisada é coberta com lona quando chove. Segundo Kelly, não faz frio na barraca. "Mas para quem não tem é muito difícil", diz.
Kelly diz que conhecia uma das pessoas morreram de frio. "Era a Loirinha, ela trabalhava aqui na Feira do Rolo. O que eu fiquei sabendo, é que ela bebeu muito e se aquecia perto de uma fogueira, quando disse que estava sentindo muito calor e foi se deitar na barraca dela. No dia seguinte, perceberam que ela estava morta. Dizem que morreu dormindo. Eu a conhecia, ela brincava com minha filha. Todos a conheciam".
Morte no Tietê
Adriana, 59, foi encontrada morta no sábado perto do terminal rodoviário do Tietê, o maior de São Paulo. Ponto de chegada de gente de todo o Brasil para a cidade que se orgulha de dizer a mais rica do país, a rodoviária está próxima do rio de mesmo nome, o que ajuda a ampliar a sensação de frio. Enquanto no centro, às 21h, os termômetros registravam 16ºC, no Tietê marcavam 15ºC.
Usuária de drogas desde uma separação turbulenta, ela foi presa com menos de 4 gramas de crack, mas foi denunciada por tráfico de drogas em 2017, e passou por vários atendimentos sociais, segundo o UOL apurou junto a servidores da área social da prefeitura.
Foram dez só em Santa Cecília, onde ela vivia em um prédio de alto padrão, com apartamentos de 135 m², anunciados para venda por até R$ 1,5 milhão. Os últimos três atendimentos já foram no Tietê.
"Ela dormia do meu lado"
"Conhecia a Adriana, ela dormia do meu lado. Ela morreu no sábado", conta o mineiro de Guaxupé, Rodrigo Antonio da Silva, 37, que está em São Paulo, em situação de rua há pouco mais de um mês.
Ex-usuário de drogas, ele afirma ainda ter problemas com álcool e que veio para a capital paulista após ser demitido de um restaurante em São José dos Campos, que cortou metade do pessoal por causa da pandemia.
"Vim para cá para pegar o ônibus para Guaxupé, mas bebi o dinheiro da passagem", contou.
Segundo Rodrigo, que conversou com o UOL às 23h, quando os termômetros registravam 15ºC perto da rodoviária, Adriana morreu de frio pois a casinha dela ficou molhada devido à chuva de sexta-feira. "Quando pediram ajuda para ela já era tarde", disse.
Socorro difícil
Profissionais de segurança da região, que pediram para não ser identificados, confirmam a versão e contam que tiveram dificuldade para conseguir atendimento no dia seguinte para um homem que estava com as extremidades roxas e sofria convulsões.
"Foram quatro telefonemas para o Samu até que viessem buscá-lo", disse a funcionária pública. Por sorte, o homem não teve o mesmo destino de Adriana e chegou a tempo no hospital e sobreviveu.
"Não fotografa a gente aqui deitado", pediu o pintor automotivo desempregado Altair Araújo dos Santos, 49, casado com a cozinheira aposentada Arlete dos Santos, 43.
Moradores de Lorena, no Vale do Paraíba, o casal está em situação de rua desde abril e chegou à São Paulo na madrugada de sexta para sábado. "Chegamos e o corpo da mulher estava embalado", disse ele.
"Será que vou morrer?"
"A gente chegou e soube que ela morreu", disse Arlete, que tinha febre e os olhos marejados e pediu para não ser fotografada por vergonha da família, que não sabe de sua situação.
"Nunca moramos na rua. Eu tremia de frio quando cheguei. Será que vou morrer também, eu pensei", conta a mulher, que não conseguia levantar para buscar a comida que estava sendo distribuída por voluntários em uma picape.
Depois do despejo, o casal deixou os móveis na casa da sogra, na zona rural de Cachoeira Paulista, também no Vale do Paraíba, e foi tentar sorte, primeiro no litoral.
"Passamos por Ubatuba, nos deixaram na divisa de Caraguatatuba. Em Caraguá disseram que não podiam nos ajudar e nos ofereceram uma passagem para onde a gente quisesse e pedimos uma passagem para São Paulo", contou Altair.
Castigo de Deus
Segundo o catador Átila Araújo da Silva, 46, a combinação de umidade e frio também foi a causa da morte de um homem de 39 anos que ele conhecia de uma maloca (nome pelo qual os moradores de rua chamam concentrações de barracas e outras moradias improvisadas na rua), morto também na madrugada de sábado.
"O rapaz se cobriu com uma manta, choveu, choveu e ele ficou molhado e adormeceu", contou.
Com diagnóstico de pneumonia, outro morador de rua, Marcos Rogério Venâncio, 47, não soube da morte do homem, pois estava na Santa Casa naquela noite.
Ele diz que fugiu do hospital, pois não gosta de ficar fechado e diz que o frio não é problema para ele. "Meu único medo é Deus me castigar". Meia-noite, os termômetros da cidade registravam 14ºC. No final das contas, a cidade registrou 9,9ºC na zona norte, o quinto dia consecutivo com registros de temperaturas abaixo dos 10ºC.
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