Witzel culpa decisão do STF por guerra de facções; MP e especialistas negam
Wilson Witzel (PSC), afastado hoje do governo do Rio pelo STJ, e os comandos das polícias Civil e Militar culparam ontem a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de restringir operações em comunidades durante a pandemia pela guerra de facções ocorrida na quarta (26) e quinta-feira (27) no Complexo do São Carlos, na região central da capital.
Porém, o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), especialistas e autoridades ouvidas pelo UOL afirmam que o argumento é falso e tenta esconder falhas nas ações de inteligência e prevenção das forças de segurança. Os tiroteios, que duraram cerca de 24 horas, deixaram ao menos três mortos —uma mãe que protegeu o filho e dois suspeitos, segundo a PM— e geraram uma série de ocorrências, como dois sequestros nos bairros do Estácio e do Rio Comprido, vizinhos às comunidades.
A tentativa de invasão começou no fim da tarde de quarta, quando traficantes do CV (Comando Vermelho) oriundos da Rocinha (zona sul) e do Fallet (região central) atacaram o Complexo de São Carlos, dominado pelo TCP (Terceiro Comando Puro) —do qual também fazem parte os morros do Querosene, do Zinco e da Mineira. Ao menos 16 pessoas foram presas e nove fuzis, apreendidos.
Após permanecer em silêncio durante o auge dos confrontos, Witzel usou o Twitter no fim da tarde de ontem para criticar o STF.
Desde junho —por decisão monocrática do ministro Edson Fachin, referendada pelo plenário da Corte no início de agosto—, em razão do contexto de pandemia, as forças policiais do Rio só podem fazer incursões em favelas em "hipóteses absolutamente excepcionais".
Após as operações, as unidades policiais precisam enviar um relatório ao MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) em até 24 horas, explicando o motivo da ação e seus resultados.
Segundo Witzel, "a atuação das polícias está limitada" no Rio. Em notas divulgadas sobre o episódio, a PM também critica a decisão, e a Polícia Civil afirma que ela causa "insegurança jurídica".
O governador ainda afirmou que "a impossibilidade da presença permanente da força policial no interior das comunidades deixa parcela da sociedade do Rio de Janeiro refém do controle pelos narcoterroristas que fazem das áreas de domínio nas comunidades seus grandes bunkers e expandem livremente sua atuação".
Em nota divulgada na tarde de ontem, a própria Polícia Civil admitiu ter produzido informações de inteligência sobre o plano de invasão às comunidades. O relatório foi difundido pelos canais oficiais e entregue à PM, mas as forças de segurança não impediram o ataque.
Posteriormente, o subsecretário Operacional da Polícia Civil do Rio, Felipe Curi, negou que tenha havido falha e alegou que a decisão do STF não permitiu que os informes fossem checados adequadamente. "A polícia tem a informação de inteligência, mas tem que fazer atividade de campo para checar se aquela informação procede ou não", disse ele
Se a polícia fosse a campo para checar essa informação, estaria desrespeitando a decisão do STF e estaria sujeita a responsabilização civil, criminal ou administrativa. Ou seja, a decisão impede que a polícia aja de forma preventiva. Só autoriza que aja de forma reativa, como está fazendo agora, quando a situação já ocorreu
Felipe Curi, subsecretário Operacional da Polícia Civil do Rio
Polícias reportaram 71 operações após liminar do STF
O MP-RJ desconstruiu a argumentação encampada por Witzel e por seu subsecretário.
Em nota enviada ao UOL, o CAO Criminal (Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais) —órgão do MP responsável por receber os relatórios sobre as operações— afirmou que " a decisão do STF não retira das polícias a avaliação exclusiva dos casos em que deva agir".
Os promotores receberam relatórios sobre 71 operações entre 5 de junho (data da liminar de Fachin) e 24 de agosto —o que mostra que as forças policiais seguem atuando no interior de favelas.
O MP ainda revela que, segundo e-mails recebidos pelo CAO Criminal, há operações programadas para os próximos dias "em comunidades de diversos bairros da cidade do Rio (como Praça Seca, Penha, Madureira, Bangu e Olaria, além de Pavão, Pavãozinho e Galo, na zona sul), e também em municípios como Angra dos Reis, São João de Meriti, Duque de Caxias, Belford Roxo, Niterói e São Gonçalo".
'Não há insegurança jurídica', dizem especialistas
O defensor público da União Thales Arcoverde Treiger, que ocupa o posto de defensor regional de Direitos Humanos do Rio, afirma que "sempre que houver vidas em risco", como ocorreu durante a invasão dos traficantes, "a polícia pode e deve atuar".
Para ele, não há insegurança jurídica, já que não cabe ao STF definir em detalhes os protocolos operacionais das polícias.
Não há qualquer insegurança com a falta de um detalhamento [da decisão]. Cabe às polícias regulamentarem o cumprimento da decisão criando protocolos para cumprir
Thales Arcoverde Treiger, defensor público da União
"A adoção de um formulário padrão eletrônico com a exposição das razões da atuação para informar ao Ministério Público e cumprir não apenas a decisão, como ao dever de controle externo da atividade policial. São medidas de cunho administrativo e não cabe ao STF descer a essas minúcias."
O sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, vê nas manifestações do governador e dos comandos das polícias uma ação política para atacar a decisão do STF e justificar possíveis falhas na prevenção do confronto.
Não é só um diversionismo, é também um movimento político para tapar o sol como a peneira. Esconder que a segurança do Rio continua em crise. Se o sistema de inteligência estivesse funcionando essa invasão não teria acontecido
Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
"Se existia um informe de inteligência e a polícia não agiu, é porque foi omissa ou politizou a questão."
Ainda segundo Lima, a decisão do STF não tirou a prerrogativa das forças de segurança decidirem quando devem atuar, como fazem crer as manifestações oficiais. "Tecnicamente o STF não tirou o poder de polícia das polícias", completa.
Já Rodrigo Costa, advogado criminalista e professor de Direito Penal da UFF (Universidade Federal Fluminense), destaca que as forças policiais tinham a obrigação de intervir no confronto por haver vidas em risco.
A própria ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) que gerou a decisão do STF destaca que esse é o objetivo primeiro da política de segurança pública.
É justamente o contrário. O que a decisão visou resguardar é a operação injustificada. Quando você tem uma guerra de facções, a justificativa é mais do que evidente. A autoridade policial tem o dever de atuar para realizar a salvaguarda da vida das pessoas que estão ali indefesas
Rodrigo Costa, professor de Direito Penal da UFF
"A decisão do Supremo foi bem ao não ser taxativa justamente porque um magistrado dificilmente conseguiria prever todas as hipóteses nas quais essa intervenção policial seria justificada", explica o criminalista.
"O espírito da ADPF é o de proteger vidas. Foi por isso que o STF deu essa decisão. Toda e qualquer ação policial realizada com esse intuito está em consonância com a decisão. Não há dúvidas de que a atuação policial estava autorizada nesse caso", completou.
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