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Após barrar congado com nome de escrava, Igreja Católica libera festa em MG

Claudinei Matias Nascimento, conhecido como Mestre Prego, é criador do Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia, que desfila pelas ruas de Tiradentes (MG) - Ckmartinelli, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Claudinei Matias Nascimento, conhecido como Mestre Prego, é criador do Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia, que desfila pelas ruas de Tiradentes (MG) Imagem: Ckmartinelli, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Rafael Martins

Colaboração para o UOL, em São João del-Rei (MG)

14/01/2021 04h00

O desentendimento com a Igreja Católica durou mais de um ano. Mas o grupo de congado da cidade histórica de Tiradentes (MG) poderá festejar novamente dentro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Os integrantes do Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia haviam sido proibidos de entrar no templo, construído por escravizados cristãos no século 18, porque o nome da agremiação leva o nome da escrava tida como ícone da luta abolicionista.

O veto foi feito pelo padre Alisson Nascimento, que chegou à paróquia há pouco menos de dois anos. O UOL não conseguiu contato com ele até a publicação desta reportagem, mas, em entrevista ao jornal Estado de Minas, o sacerdote afirmou que o impedimento partiu de uma questão "doutrinal", pois a escrava Anastácia não é uma santa católica.

Houve uma comoção online e deputadas estaduais e federais se manifestaram para que o congado fosse retomado. A liberação foi feita no dia 6 pelo bispo Dom José Eudes Campos do Nascimento.

A Diocese de São João del-Rei liberou festividades e rituais religiosos do congado no espaço da igreja assim que as restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus permitirem. A maior comemoração é em 7 de outubro, dia de Nossa Senhora do Rosário.

Intolerância religiosa

Conhecido como Mestre Prego, Claudinei Matias Nascimento, fundador e líder do congado, afirmou que o acordo foi feito pessoalmente entre o bispo e o padre, que o procurou logo depois.

Foi um mal-entendido, Anastácia não é reconhecida como uma santa. Mas não se separa o congado da igreja. Queremos agradecer ao padre, ao bispo e ao povo que lutou do nosso lado.
Mestre Prego, líder do congado

congado - Divulgação - Divulgação
Integrantes do Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia desfilando pelas ruas de Tiradentes (MG)
Imagem: Divulgação

Mesmo proibidos de pisar na igreja, o grupo continuou a cantar e batucar pelas ruas de pedra de Tiradentes, segundo Mestre Prego, por "uma questão de resistência".

Parlamentares classificaram o caso como intolerância religiosa. A deputada estadual Andréia de Jesus, do PSOL, é uma das que atuaram para contornar o problema.

Além de acionar a cúpula eclesiástica da Igreja Católica em Minas Gerais, ela levou a questão a institutos que preservam o patrimônio público e histórico no estado. Para ela, o congado é manifestação legítima de fé e importante repositório das características históricas e culturais da população afrobrasileira.

O catolicismo negro que é fundador e tão tradicional na história de Minas merece e deve ser respeitado, especialmente agora, quando completamos 300 anos de fundação do estado. Dedicamos atenção especial aos povos e comunidades tradicionais, assim como aos casos de intolerância religiosa.
Andréia de Jesus, deputada estadual

Para a deputada federal Áurea Carolina, também do PSOL, o pronunciamento de Dom Eudes "pacifica a questão" e é "um instrumento de enfrentamento ao racismo religioso".

Quem foi a escrava Anastácia?

A escrava Anastácia passou a ter devotos recentemente, intensificados na década de 1960 após uma exposição na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Rio de Janeiro.

De acordo com a lenda, era uma mulher da África Central, trazida ao Brasil no século 18. Cativa, se recusava a ter relações sexuais com seus senhores e, por isso, vivia com uma mordaça na boca. Sua figura é vista como uma guerreira que lutava contra a opressão. Segundo a história, ajudou escravos com seus poderes místicos, mas nunca foi canonizada nem beatificada.

Os congados costumam reunir tradições católicas, umbandistas e até do kardecismo para reviver celebrações realizadas por escravizados em homenagem ao rei do Congo.

Estas festas costumam unir música, expressões corporais e artísticas. Feitos pelos congadeiros, os trajes com tons fortes e repletos de fitas coloridas sinalizam as funções de cada integrante, como rei e rainha do Congo, generais, capitães e guardas.

O congado de Mestre Prego peregrina pela cidade tocando tambores, cabaças, bambus e cipós, além de cantar músicas ancestrais.

Além de Anastácia, o grupo celebra em seu nome a santa católica, popular entre negros escravizados porque era madrinha de batismo de São Benedito, um santo negro, e intercedia por ele.

congado2 - Divulgação - Divulgação
Integrantes do Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia desfilando pelas ruas de Tiradentes (MG)
Imagem: Divulgação

"No primeiro ano, o povo estranhou"

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, formada por negros escravizados no período colonial, construiu entre 1708 e 1719 a Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes.

De arquitetura barroca e decoração que anunciam o sincretismo religioso, o espaço é repleto de elementos que ecoam a luta dos negros para preservar suas tradições culturais, como pinturas e estátuas de santos africanos e elementos de outros cultos.

Já a homenagem a Anastácia é uma referência a parte de sua lenda, que diz que seu corpo foi enterrado no cemitério da igreja. É por isso e por ter sido feita por escravizados que parte da celebração do congado passa pelo templo.

Devido a sua importância histórica e artística, a igreja é tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Procurado pelo UOL, o instituto não se manifestou.

Fundado em 2011, o Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia é o resgate de uma das mais tradicionais manifestações culturais e religiosas da região. O congado também oferece oficinas de capoeira e pintura para crianças.

Mestre Prego afirma que o congado é profundamente respeitado pelos moradores locais: "Foi muito difícil no primeiro ano. O povo estranhou, ficavam olhando com medo. No segundo ano nos abraçaram".

Natural de Barroso (MG), ele herdou o amor pela tradição congadense do pai, que era capitão de congado.

Fundou o grupo após se mudar para Tiradentes pela necessidade de resgatar a memória da contribuição do povo negro para a região.

"Achei um descaso com os irmãos não ter congado. Só falam do povo preto na hora de lembrar o nosso sofrimento."