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Perfilamento racial: Por que homens negros em veículos são alvo de suspeita

O motoboy Alan Campos Oliveira: "Que perfil é esse que eu tenho? Ser negro?" - Arquivo Pessoal
O motoboy Alan Campos Oliveira: 'Que perfil é esse que eu tenho? Ser negro?' Imagem: Arquivo Pessoal

Marcela Lemos e Lola Ferreira

Colaboração para o UOL e do UOL, no Rio

20/06/2021 04h00

"No início da pandemia, de cinco dias, eu era parado quatro vezes pela polícia. Esse ano, são duas paradas por semana. Eles [PMs] te abordam, mandam ficar com a mão no guidão da moto, te revistam, perguntam se você está levando droga (...) Uma vez, perguntei ao policial o motivo de ele ter me parado e ele respondeu que eu tinha perfil. Que perfil é esse que eu tenho? Ser negro?"

O motoboy Alan Campos Oliveira, 28, denuncia que abordagens policiais são motivadas pela cor da pele. O preconceito que taxa pessoas negras como suspeitas vai além do olhar institucional. E os episódios são cotidianos. No dia 12, o instrutor de surfe Matheus Ribeiro, 22, foi acusado injustamente por um casal de branco de ter roubado sua própria bicicleta elétrica no Leblon.

A ativista de direitos humanos e coordenadora da ONG Criola, Lucia Xavier, afirma que os casos dizem respeito ao chamado "perfilamento racial" —ato de suspeitar de uma pessoa por conta de características como a cor da pele.

Lucia vê o problema institucionalizado em diferentes esferas públicas. A prática é alimentada pelo racismo estrutural —condutas que colocam automaticamente o outro em posição inferior.

O perfilamento racial é baseado no racismo e isso faz parte dos manuais públicos. É como se todo negro fosse usuário de drogas ou favelado, ou estivesse roubando. Não importa se ele está indo para o trabalho. A questão racial no Brasil e está presente na estrutura pública: na segurança, na Justiça, na saúde. Tudo funciona de forma a criminalizar o negro"

Lucia Xavier, coordenadora da ONG Criola

Alan conta que, em abordagem policial no ano passado, foi segurado pelo pescoço e colocado de forma agressiva com o rosto virado para um muro. Isso porque PMs desconfiaram que estivesse armado, pois carregava na cintura um equipamento que media os batimentos cardíacos.

O ator Ricardo Fernandes anda com passaporte para tentar evitar constrangimento em abordagem policial no Rio - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O ator Ricardo Fernandes anda com passaporte para tentar evitar constrangimento em abordagem policial no Rio
Imagem: Arquivo Pessoal

"O policial disse assim: 'Tá maluco? Quer que eu adivinhe como com essa cara aí?' Mas é a cara que eu tenho", relembrou em conversa com o UOL.

O ator Ricardo Fernandes estava em uma moto na Lapa, no centro do Rio, quando teve uma arma apontada contra ele em uma ordem de parada.

"Já andei com carteira de trabalho, agora ando com passaporte pensando no status que isso dá durante a revista. Minha mãe sempre me pergunta se estou com documento ou se tenho como provar que aquilo que estou carregando é meu. As pessoas pretas têm outro formato de sobrevivência para se preservar."

A pele branca é associada no imaginário social à competência, beleza, correção, gente de bem. Basta ter a pele branca para a fala do sujeito ser imediatamente aceita e o homem negro ser transformado em suspeito. E isso tem a ver com nossa história de herança escravocrata"

Cida Bento, doutora em psicologia pela USP e diretora-executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades

Polícia banaliza revista e lei vira 'aconselhamento'

Para esse tipo de abordagem, a polícia precisa ter em posse um mandado de busca pessoal, aponta Hedio Silva J. R. Júnior, coordenador executivo do Idafro (Instituto de Defesa do Direitos das Religiões Afro-Brasileiras). Sem um mandado judicial, somente em casos excepcionais, ressalva o advogado.

"A regra é que a busca pessoal fosse amparada por mandado, mas há exceção e o que acontece é que a polícia banalizou essa revista. A lei é tratada como mero aconselhamento mesmo o Supremo [Tribunal Federal] tendo deliberado que a busca submete ao inequívoco constrangimento público."

J. R. Júnior defende mecanismos de controle da atuação policial. Para ele, as abordagens devem ser inseridas em sistema com justificativa da ação em que a população pudesse requisitar acesso e o Ministério Público, fiscalizar.

Entraves para responsabilizar racismo

Apesar do prejuízo emocional, psicológico e financeiro, Alan não registrou o caso na delegacia. Para Lucia, jovens como ele deixam de fazer boletim de ocorrência por dificuldades que encontram em caracterizar o racismo.

Ela destaca que a maioria das denúncias motivadas por racismo se transforma em registros de calúnia. O coordenador do Idafro diz ser possível a responsabilização do autor de discriminação via Vara Cível mesmo em caso de racismo.

"Os processos ocorrem através de provas e, na área criminal, o rito de produção de provas é mais rigoroso. Então, é recomendável que seja aberto um processo também na área cível. Assim é possível dar respostas à vítima e punir o agente."

O médico anestesista Gilmar Francisco, 37 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O médico anestesista Gilmar Francisco, 37
Imagem: Arquivo Pessoal

Da blitz à sala de cirurgia: médico é alvo de racismo

No trabalho, em momentos de lazer e em situações cotidianas como levar os filhos à escola, o racismo se revela para o médico anestesista Gilmar Francisco, 37.

"No hospital esperam que eu seja tudo, menos o médico. Tem pessoas que dizem: 'Não quero falar com você, quero falar com o médico'. Já teve colega que me confundiu com o maqueiro. Uma vez me chamaram para ajudar a intubar um paciente. Quando cheguei na sala cirúrgica, a colega disse: 'Pedi para chamar um anestesista'. Eu precisei dizer: 'Eu sou o médico anestesista'."

Parado duas vezes em blitz, Francisco foi obrigado a descer do veículo de aplicativo e a responder perguntas sobre a faculdade onde se formou.

"O carro foi parado e começou o interrogatório. Quando apresentei meu CRM [registro profissional], o policial chegou a me perguntar onde eu me formei e onde ficava minha faculdade. Isso é pergunta que se faça em uma blitz? Tenho certeza que se eu fosse branco não aconteceria isso", disse o médico.