Indígenas no Rio lutam para reverter séculos de "apagamento"
Resumo da notícia
- Rio de Janeiro abriga a quarta maior população indígena do país em área urbana
- Presença e a história dos povos originários, porém, foram deliberadamente ?apagadas?
- Muitos pontos turísticos da cidade têm raiz indígena
- Isso porque foram construídos com trabalho forçado dos povos originários ou foram erguidos sobre territórios indígenas
- A palavra carioca também tem origem indígena
Maracanã, Ipanema, Arcos da Lapa, Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro? Milhões de turistas brasileiros e estrangeiros que visitam a cidade mais famosa do Brasil todos os anos conhecem esses lugares. Mas o que a maioria dos visitantes — e mesmo os cariocas — não sabe é que todos esses lugares têm uma raiz indígena, seja por terem sido construídos com trabalho forçado dos povos originários ou por terem sido erguidos sobre territórios indígenas. A palavra carioca também tem origem indígena.
Os arcos, no boêmio bairro da Lapa, na região conhecida como Rio Antigo, foram construídos nos séculos 17 e 18 para dar sustentação ao Aqueduto da Carioca, que trazia água do Rio Carioca para o centro da cidade. Hoje, a Lapa é o coração da vida noturna da cidade e, em vez de água, a estrutura serve de passagem para o popular bondinho de Santa Teresa. Mas aqueles que trabalharam para construí-lo ficaram esquecidos, afirma a historiadora Ana Paula da Silva, doutora em memória social.
Muitas pessoas passam pelos Arcos da Lapa, mas não imaginam que aquele monumento que hoje é um patrimônio, um símbolo da cidade do Rio de Janeiro, foi construído por mão de obra escrava indígena"
Ana Paula da Silva, pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (Pro Índio) da UERJ
"E hoje a gente não tem essa memória, [essa] história nos livros, na mídia", disse a historiadora em frente ao Paço Imperial, no centro do Rio — outra estrutura icônica construída com trabalho escravo indígena.
Outro aspecto oculto da história da cidade, segundo a historiadora, encontra-se debaixo da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro.
Popularmente conhecida como Igreja da Glória ou simplesmente Outeiro, foi construída sobre território indígena tupinambá disputado por colonizadores franceses e portugueses e povos indígenas durante as batalhas de reconquista do século 16. Segundo relatos da expedição francesa, aos pés da atual igreja ficava uma aldeia tupinambá chamada Kariók ou Karióg, nome que provavelmente deu origem à palavra carioca.
Inúmeros nomes e expressões que fazem parte do cotidiano carioca derivam da língua tupinambá. Ipanema, significa "água inapropriada" na língua tupinambá. Maracanã é o nome de um pássaro parecido com uma arara, que emite um ruído que parece um chocalho; também deu nome a um rio e ao bairro do Maracanã onde fica o icônico estádio. A palavra carioca refere-se ao nome de um rio e de uma aldeia que, segundo alguns especialistas, significa a moradia dos indígenas carijó; outros interpretaram como a casa do homem branco.
Ana Paula da Silva explica que o significado desses nomes pode ter variado ao longo do tempo; estima-se que haja cerca de 40 mil verbetes indígenas no dicionário brasileiro.
Muitos turistas e cariocas também desconhecem muitos hábitos indígenas que hoje fazem parte do estilo de vida brasileiro, como tomar banho todos os dias, dormir em redes e comer aipim.
Com quase 7.000 habitantes, o Rio tem a quarta maior população indígena brasileira em números absolutos, de acordo com o censo de 2010 (o próximo censo será realizado em 2022). Mas essa presença está diluída em uma população total de 7 milhões. (Veja os mapas interativos que mostram onde os indígenas moram na cidade, suas etnias e condições de vida na reportagem publicada no site da Mongabay)
O censo de 2010 foi o primeiro da história do Brasil a identificar a presença indígena em Terras Indígenas, áreas rurais e também nas áreas urbanas de todo o território brasileiro. O censo lista 127 grupos étnicos no Rio que falam 26 línguas. O povo guarani ocupa o topo da lista com 261 habitantes, seguido pelos grupos étnicos tupiniquim (171), guarani kaiowá (144) e tupinambá (136).
O bairro carioca com o maior número de indígenas é Campo Grande; em 2010, o bairro abrigava 373 indígenas. Em Copacabana, residiam 222 indígenas — a quarta maior população entre todos os bairros do Rio — com predominância tupiniquim, guarani e terena. Também havia 123 indígenas no bairro histórico de Santa Teresa, 42 em Ipanema e 30 no Leblon.
Nascida no Rio, a professora de história Marize Vieira de Oliveira Guarani, 62, só se reconheceu indígena há 16 anos, apesar de ter uma avó da etnia guarani.
Eu não me declarava indígena, eu não me declarava nada porque... não existia nem o quesito indígena para as cidades. Você não podia colocar indígena como alguém que morasse na cidade"
Marize Vieira de Oliveira Guarani, professora de história
De fato, a opção de se autodeclarar indígena só apareceu nos censos de 1991 e 2000, mas ficou restrita a uma amostra da população; somente no censo de 2010 foi estendido a todos os cidadãos brasileiros.
Uma década depois, declarar-se indígena ainda é "doloroso", disseram os entrevistados à Mongabay, citando o preconceito arraigado entre os cariocas e na sociedade brasileira como um todo.
Quando cursava o mestrado em educação, relata Marize Guarani, uma professora do curso perguntou se ela era "uma indígena de verdade"; ela também conta ter sido chamada de "índia do Paraguai".
Um dos símbolos-destaques da resistência indígena no Rio é a chamada Aldeia Maracanã, um prédio a poucos metros do mundialmente famoso estádio do Maracanã, na zona norte da cidade, que abrigou o antigo Museu do Índio até o final da década de 1970. Em 2006, o edifício foi ocupado por um grupo de indígenas que pretendia criar um centro cultural no local.
A ocupação ganhou manchetes internacionais em 2013, quando o governo do estado do Rio de Janeiro tentou despejar o grupo para construir um estacionamento para a Copa do Mundo do ano seguinte, desencadeando uma batalha judicial fundiária que continua até hoje.
Ao longo dos anos, ocorreram vários ciclos de ocupação e despejo -- e até prisão de lideranças indígenas -- na Aldeia Maracanã, onde hoje vivem cinco famílias de sete etnias. Na Aldeia Maracanã, o líder indígena José Urutau Guajajara ensina línguas indígenas de vários troncos, principalmente as línguas do tronco tupi e das famílias tupi-Guarani.
"[Meu sonho] é de ver isso aqui transformado em uma universidade para todos os parentes, mas é uma universidade pensada, gerida e administradas por indígenas, não pelo estado"
José Urutau Guajajara, líder indígena
José Urutau se refere à batalha judicial travada pelo grupo para a demarcação da área como Terra Indígena para criação da universidade indígena. Nascido na aldeia Lagoa Comprida, no Maranhão, ele é mestre em linguística pela UFRJ e doutorando em linguística pela Uerj.
*Leia a íntegra da reportagem originalmente publicada e com mapas e gráfios interativos no site da Mongabay.
*Esta reportagem faz parte do especial Indígenas nas Cidades do Brasil e recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
* Infográficos: Ambiental Media / Laura Kurtzberg.
* Pesquisa e análise de dados: Yuli Santana, Rafael Dupim e Ambiental Media.
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