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Ex-escravizada recebe imóvel onde trabalhou: 'Não quero ninguém lá dentro'

Madalena Gordiano, que passou 38 anos em condições análogas à escravidão - Joel Silva/UOL
Madalena Gordiano, que passou 38 anos em condições análogas à escravidão Imagem: Joel Silva/UOL

Thiago Rabelo

Colaboração para o UOL, de Patos de Minas (MG)

16/07/2021 04h00Atualizada em 16/07/2021 12h32

Após o desfecho do processo trabalhista que moveu contra a família Milagres Rigueira, Madalena Gordiano relata ao UOL estar se sentindo aliviada. Libertada após 38 anos de trabalho análogo à escravidão, ela receberá como indenização um apartamento e um carro que pertenciam às pessoas que exploraram durante tanto tempo sua força de trabalho.

Em entrevista ao UOL, Madalena deu detalhes sobre o futuro. Mas disse que, antes de tomar qualquer decisão, quer visitar o imóvel. Foi lá que ela passou os últimos 15 anos sob maus tratos, abandono e exploração em Patos de Minas (MG). Agora, quer entrar nele como dona sem "ninguém enchendo o saco".

Eu ainda não sei o que vou sentir. Não sei. Mas quero ir lá. Vou entrar lá e vou ver. Vamos ver o que vai ser. Mas eu não sinto nada não. Acho que vai ser um alívio porque não vai ter ninguém lá dentro me enchendo o saco. É isso que eu vou sentir. Não quero que ninguém esteja lá dentro quando eu entrar
Madalena Gordiano

O apartamento que Madalena quer visitar possui quatro quartos, dois banheiros, sala e cozinha. Também tem uma despensa. Feito para ser um depósito, o cômodo de seis metros quadrados e sem janelas foi onde ela viveu nos últimos 15 anos, sem nem poder almoçar ou jantar no mesmo ambiente em que a família Milagres Rigueira.

Era lá que ela fazia suas refeições e onde ela se levantava às 2h da manhã e para onde se dirigia às 20h, quando parava de trabalhar.

O imóvel faz parte do acordo firmado em audiência virtual na última terça-feira (13) na terceira região do Tribunal Regional do Trabalho. Madalena cobrava o pagamento de R$ 2.244.078,81 em direitos trabalhistas, mas aceitou proposta oferecida no valor de R$ 690.100. Apesar de estar avaliado em R$ 600 mil, há uma dívida de R$ 180 mil em financiamento e incertezas sobre o real valor do imóvel. O acerto inclui ainda um carro Hyundai, de R$ 70 mil, e o pagamento de R$ 20 mil.

O acordo leva em conta apenas a relação trabalhista e tinha como réus o professor universitário Dalton Milagres Rigueira, sua esposa, Valdirene Lopes Rigueira, e as filhas do casal, Bianca Lopes Milagres Rigueira e Raíssa Lopes Fialho Rigueira.

A relação de exploração com a família Milagres Rigueira começou quando ela tinha 8 anos. Durante 23 anos, ela trabalhou na casa de Maria das Graças, mãe de Dalton. Nos 15 anos seguintes, passou a servir o filho.

Madalena não quer morar no imóvel de Patos de Minas. O plano é vender o apartamento e o carro para comprar uma casa próxima a Uberaba, onde vive Taís Teófilo, a conselheira tutelar que a acolheu e com quem vive desde dezembro.

Não quero morar lá em Patos, não. Não dá certo. Tem uma mulher chata no prédio, não é certo eu morar lá perto mais não. Patos eu só quero passear porque tenho muitos amigos lá. Mas ainda não decidi onde vou morar não. Tem de ser perto de Patos e tem de ser perto da Taís. Ela é uma pessoa muito boa e que me ajuda muito
Madalena Gordiano

O acordo trabalhista não era o único movido por ela, que também deu entrada em um processo administrativo e criminal em que outros membros da família, como Maria das Graças, são apontados como responsáveis pela exploração. Os casos estão sendo conduzidos pelo Ministério Público Federal e não há previsão para um desfecho.

Além da indenização trabalhista, Madalena começará a receber, de forma integral, uma pensão por ter sido casada com Marino Lopes da Costa, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial.

Realizado em 2001, o matrimônio foi arranjado pelos Milagres Rigueira de olho na saúde debilitada do ex-militar, que é tio da esposa de Dalton. A família passou a administrar o dinheiro recebido por Madalena assim que Costa morreu em 2003. Madalena nunca morou com ele nem tinha conhecimento da pensão.

Madalena - Joel Silva/UOL - Joel Silva/UOL
Madalena Gordiano e Taís Teófilo, a conselheira tutelar que a acolheu e com quem vive desde dezembro de 2020
Imagem: Joel Silva/UOL

Assim que se desvencilhou da família Milagres Rigueira, ela descobriu que cinco empréstimos consignados foram feitos em seu nome, o que resultava em um desconto de R$ 5 mil por mês.

Em junho, os advogados de Madalena conseguiram entrar em acordo com os bancos e os descontos vão cessar. Com isso, ela poderá receber de forma integral a pensão de R$ 8,4 mil. Antes disso, o dinheiro de Madalena ajudou a custear a faculdade de Medicina de outra das filhas do casal.

Assim que conseguir negociar carro e apartamento, Madalena quer montar uma casa ao seu estilo. Aos 48 anos de idade, sendo 38 de abandono e privados de liberdade, ela projeta usar o dinheiro para saciar alguns desejos reprimidos. Um deles é poder dormir em uma grande cama.

Eu quero comprar muita coisa. Quero geladeira, fogão, máquina de lavar roupa porque eu gosto muito de máquina de lavar roupa. E quero também uma cama de casal daquelas bem grandona, de cabeceira, aquelas camas bem largas mesmo
Madalena Gordiano

Uma televisão também está nos planos, mas por um motivo especial: "Eu vou comprar uma televisão bem grande, mas eu não gosto muito não. Assisto pouca coisa. Mas quando eu apareço na televisão, eu ligo para ver".