Havan: Obra "parou poucos dias" após achados arqueológicos, diz professora
A professora do curso de arqueologia da Furg (Universidade Federal do Rio Grande), Beatriz Thiesen, afirma que as obras da Havan em Rio Grande (RS) pararam por "alguns poucos dias" após os achados arqueológicos e depois prosseguiram.
Relatório realizado por uma empresa contratada pela loja de departamentos aponta que 20 artefatos foram encontrados no local. Entre eles estão cerâmicas pré-coloniais de dois tipos diferentes —uma delas de indígenas tupi-guaranis— e pedaços de louças fabricadas no final do século 19.
Ontem, a Justiça Federal no Rio de Janeiro determinou, em decisão liminar, o afastamento da presidente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Larissa Peixoto Dutra. O STF também analisa a intervenção. Escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro e empossado recentemente no Supremo, o ministro André Mendonça foi escolhido relator da ação.
A descoberta dos vestígios aconteceu em 2019 e voltou à tona nesta semana após o presidente Jair Bolsonaro (PL) admitir que fez trocas na direção do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) ao receber reclamações de Luciano Hang, dono da rede de lojas de departamentos e apoiador ferrenho do político. A loja foi inaugurada em julho deste ano.
Beatriz é coordenadora da reserva técnica da Furg, como é chamado o espaço de guarda deste tipo de material, e acompanhou indiretamente o trabalho dos arqueólogos, ex-alunos dela. Na época da obra, a universidade acabou concedendo o endosso institucional para o projeto que foi encaminhado ao Iphan.
A professora entende que a obra não deveria ter sido liberada da maneira que foi pelo Iphan. Em parecer técnico, foi indicado a "interdição" de uma área de 0,3 hectares, podendo as obras seguir nos outros 30,52 hectares restantes.
"Eu entendo que as obras deveriam ter sido paradas e sido feito o salvamento do sítio e depois a obra continuava. Não foi o que aconteceu. O Iphan solicitou que os arqueólogos permanecessem no canteiro de obras enquanto a obra ia acontecendo, eles acompanhassem a obra e fossem recolhendo o que tinha por ali. Então, claro, isso é uma perda danada, se perde contexto dessas informações todas, quando passa uma retroescavadeira ali mistura ocupação indígena com europeia, com tudo", entende Beatriz.
"A obra parou alguns poucos dias até que Iphan disse que podia retomar a obra, com o acompanhamento dos arqueólogos. Esse acompanhamento aconteceu, essas peças que foram encontradas elas estão sob responsabilidade da Furg, foram entregues para a Furg. Mas de toda forma a perdeu muita coisa, muita informação, que a gente não recuperou o sítio arqueológico. A gente recuperou peças, poucas, sem contexto", complementa a professora.
A opinião de Beatriz é compartilhada pelo professor do curso de arqueologia da Furg, Danilo Bernardo. Para ele, obras do tipo deveriam ser interrompidas no momento em que se encontram achados arqueológicos.
"O grande problema do licenciamento vem enfrentando, encarando é essa cadeia de operação: está sendo feito obra e daí se encontra evidência (arqueológica), ao invés de continuar obra a todo vapor, vamos encontrar mais evidências, vamos tentar contextualizar as evidências que nós encontramos. Exatamente para se saber o que, de fato, aquilo quer dizer."
O professor compara os achados arqueológicos como um grande quebra-cabeças, porém com a ausência de diversas peças e sem nenhum material de apoio que poderia auxiliar a completar o jogo.
Professora e arqueóloga foram alvos de linchamento virtual
Beatriz lembra que Luciano Hang ficou irritado com a demora na liberação da obra e foi até Rio Grande no final de outubro de 2019. No terreno, o empresário inaugurou um painel chamado de "atrasômetro" devido à demora para obter o alvará do estabelecimento. Na época, segundo o banner, a loja de departamentos aguardava havia 150 dias o alvará de construção.
Neste dia, Beatriz acabou indo até o local acompanhada de alunos e alguns professores para "ver o que ele [Hang] tem para nos dizer, a população local". A Havan fica próxima do campus da Furg e o grupo acabou indo a pé.
Fizeram um auê ali e nós ficamos de canto lá. Até eu comentei: 'gente, não digam nada, não façam nada porque a gente não tem o que fazer nessa altura do campeonato'. As pessoas passavam e ele [Hang] buzinava e ele abanava, aquela palhaçada toda, aquele teatro. Durou no máximo 20 minutos."
Na saída, um dos integrantes gritou para o grupo "vão para a escola pegar uns piolhos", segundo a professora. E os estudantes passaram a trocar insultos com quem estava na carreata, o que levou segundos.
Cerca de três semanas após a ida de Hang a Rio Grande, Danieli Helenco, diretora substituta do CNA (Centro Nacional de Arqueologia), ligado ao Iphan, em Brasília, cobrou a "apresentação imediata" do relatório final das atividades desenvolvidas no terreno da Havan, já que o prazo havia expirado. O documento foi apresentado em novembro.
Entre os profissionais que assinam o documento está a arqueóloga Danielle Crescenti Dias. Após a visita de Hang ao terreno no final de outubro, ela e a professora da Furg passaram a ser alvos de linchamento virtual.
"Foi um horror. Inclusive a filhinha dela [de Danielle] de três anos, acabaram separando fotos dela e colocaram: 'a filha da arqueóloga vagabunda'. Foi uma coisa horrorosa. A minha mãe tem 79 anos, daí ela falava: 'minha filha, estão te chamando de vagabunda, terrorista'. Coitada. Foi bem complicado, foi uma situação extremamente difícil."
Beatriz procurou a justiça e processou algumas pessoas por danos morais, porém, acabou sendo derrotada. Alguns processos ainda estão em andamento, segundo ela.
A reportagem também tentou contato com arqueóloga Danielle Crescenti Dias, mas sem sucesso.
UOL procurou ainda Charles da Silva de Miranda, diretor geral da Archaeos - empresa contratada pela Havan para fazer o levantamento arqueólogico. Por meio de mensagens, o profissional disse que o processo da Havan já havia sido finalizado. "Qualquer informação deve ser solicitada ao Iphan-RS", disse. "Nossa empresa não pode fornecer nenhuma informação do processo", complementou Miranda, sem explicar por que não poderia passar informações à reportagem.
A reportagem entrou em contato com a assessoria da Havan, realizada pela empresa New Age Comunicação, mas não obteve retorno.
UOL também procurou o MPF (Ministério Público Federal), que instaurou um inquérito civil público relacionado aos achados arqueológicos no terreno da loja de departamento. Porém, o órgão se limitou a dizer que a investigação é sigilosa e está "em curso". A assessoria do órgão salientou ainda que a procuradora da República de Rio Grande, Anelise Becker, "não pretende falar com a imprensa", em nota enviada ao UOL.
Cerâmicas foram os primeiros vestígios a ser encontrados
Os primeiros vestígios arqueológicos no terreno foram encontrados em 4 de julho de 2019 pela Archaeos Consultoria em Arqueologia, contratada pela Havan para fazer a análise da área. Na época, havia 152 sítios arqueológicos cadastrados no Iphan-RS apenas em Rio Grande.
Neste dia, foram localizados quatro fragmentos - três deles cerâmicos e um não identificado. No final da análise dos arqueólogos, que durou três meses, foram localizadas 20 peças: 11 de cerâmica, oito de louças e um não identificado.
Feitas por povos indígenas, essas cerâmicas encontradas ali são de dois tipos diferentes, da Tradição Vieira e da Tradição Tupi-Guarani. Uma das diferenças entre elas é o local onde os fragmentos são localizados. Na primeira, os sítios arqueológicos estão em áreas alagadiças, enquanto a outra é proveniente de sítios erodidos entre dunas. Há a possibilidade de serem encontradas no mesmo local, o que é mais difícil de ocorrer.
No canteiro de obras da Havan foram localizadas mais cerâmicas da tradição Vieira, que podem ter vindo de "alguma duna erodida no fundo do empreendimento, e sido espalhados por todo o terreno ao longo dos anos, seja pela ação humana ou ação natural", destacam os profissionais.
Os objetos podem ter entre 200 a 2 mil anos.
O nome Vieira se deve pelo local onde foram encontrados pela primeira vez os achados arqueológicos deste tipo em Rio Grande, em 1966. Segundo pesquisadores da área, essa cerâmica era utilizada por "grupos caçadores, coletores e pescadores encontrados no sul do Rio Grande do Sul e norte do Uruguai".
São recipientes simples, sem decoração. "Em suma, a tradição Vieira é conhecida por possuir vasilhas de base plana ou convexa, por terem tamanhos pequenos, com formas e contornos simples, coloração escura e geralmente sem decoração", observam os pesquisadores que assinam o relatório final.
Apenas um fragmento é de cerâmica Tupi-Guarani, que estava bastante desgastado, conforme descrição dos profissionais. "Mas parece ter a decoração corrugada, característica de vasilhas utilizadas como panelas", segundo trecho do documento.
Também foram encontrados fragmentos de uma "possível panela de barro" e três artefatos históricos de faiança fina, uma louça branca, associada a argilas mais plásticas. Porém, diferente dos outros achados, são de um período diferente. Uma delas, com decoração de faixas e friso coloridos na borda, parou de ser produzida nos últimos anos do século 19. Já outros dois tipos passaram a ser produzidos entre 1851 e 1860 e ainda hoje são fabricadas.
Na base de uma dessas peças é possível ler a palavra "Oxford", marca brasileira de louças criada em 1953.
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