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Em seis meses, proibição do STF barrou o despejo de 20 mil pessoas

Casas destruídas após a reintegração de posse de mais de 200 famílias da ocupação Penha na zona norte de São Paulo - Tommaso Protti/UOL - 28.mai.2021
Casas destruídas após a reintegração de posse de mais de 200 famílias da ocupação Penha na zona norte de São Paulo Imagem: Tommaso Protti/UOL - 28.mai.2021

Rafael Neves

Do UOL, em Brasília

14/01/2022 04h00

Quase 20 mil pessoas foram beneficiadas pela decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que suspendeu, durante a pandemia, despejos em áreas urbanas e rurais. Até o final de novembro a Corte reverteu 30 decisões da Justiça, em instâncias inferiores, que autorizavam as desocupações. Juntas, estas revisões protegeram 19.923 pessoas de ficarem sem teto em meio à crise sanitária.

Os números estão em uma nota técnica elaborada pelo Insper, que analisou os seis primeiros meses de vigência da norma. Ouvidos pelo UOL, especialistas e líderes de movimentos sociais avaliam que a decisão do STF foi importante, mas não é infalível, e milhares continuam a perder suas casas.

A restrição imposta pelo Supremo se somou, no final de setembro, a uma lei aprovada pelo Congresso que também passou a proibir despejos durante a pandemia. Mesmo com essas barreiras, contudo, 27 ações de reintegrações de posse, determinadas em vários tribunais pelo país, foram confirmadas pelo STF, segundo a pesquisa do Insper.

Despejos autorizados

Estes processos são recursos movidos pelos atingidos, no Supremo, contra decisões desfavoráveis em outras instâncias. Ao analisar estes casos, a Corte considerou que eles não se enquadravam nos critérios de proteção, autorizando o despejo de quase 3.000 pessoas.

O número real de afetados, no entanto, tende a ser maior, já que em parte dos processos não foi possível quantificar os atingidos. A provável subnotificação ocorre também em relação aos cerca de 20 mil que foram poupados da medida no período.

"A decisão do STF foi positiva, e nós já conseguimos muitas decisões favoráveis com base nela. Mas isso não quer dizer que a gente também não veja o descumprimento dela", avalia Wilza Folchini Barreiros, coordenadora do grupo de trabalho Moradia e Conflitos Fundiários da DPU (Defensoria Pública da União).

Em outubro, a DPU obteve no STF a derrubada de uma decisão da Justiça do Amapá que ordenava o despejo de mais de 900 famílias, cerca de 5.000 pessoas, que vivem há mais de dois anos em um terreno da União na capital, Macapá. O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, considerou que a área não pode ser alvo de desocupação enquanto durar a restrição do tribunal.

Mas o desfecho nem sempre é o mesmo. O STF já negou, entre outros, um pedido da Defensoria Pública do Rio de Janeiro para reverter uma decisão da Justiça, em julho, que permitiu o despejo de 1.400 pessoas em Itaguaí (RJ).

A ocupação, chamada Campo de Refugiados 1º de maio, ficava em um terreno da Petrobras e abrigava mais de 350 famílias. Conforme mostrou o UOL, a desocupação ocorreu sob repressão da Polícia Militar, que usou balas de borracha e spray de pimenta contra os moradores. Uma das lideranças do grupo chegou a ser presa.

Reintegração de posse no terreno da Petrobras em Itaguaí (RJ) - Lola Ferreira/UOL - Lola Ferreira/UOL
Reintegração de posse no terreno da Petrobras em Itaguaí (RJ)
Imagem: Lola Ferreira/UOL

O caso foi levado ao Supremo e, em novembro, a ministra Rosa Weber deu razão à Justiça fluminense. Na decisão, pesou o fato de que o local só foi ocupado em maio do ano passado (daí o nome da comunidade).

Segundo as normas ditadas pelo ministro Luís Roberto Barroso, e confirmadas pelo plenário dias depois, só estão protegidas de despejo as ocupações formadas até 20 de março de 2020, marco inicial da pandemia.

Áreas ocupadas após essa data, porém, estão sujeitas a despejo, desde que o poder público garanta que as pessoas "sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada", um critério que Weber considerou atendido. No caso de Itaguaí, os ocupantes foram levados a escolas municipais.

Grafico 2 despejo em tempos covid -  -

Brechas na proteção

Ainda era madrugada quando Anderson Dalecio, dirigente do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), chegou a uma ocupação em São Bernardo do Campo, na região de São Paulo. A intenção era lutar contra o despejo de cerca de 50 famílias, entre moradores e comerciantes, que utilizavam o local, em outubro do ano passado.

Dalecio conta que viu, logo na chegada, as casas cercadas por viaturas da guarda municipal, inclusive da Romu (Ronda Ostensiva Municipal), uma tropa especial da corporação. "O local do despejo já estava cercado, mas as máquinas de demolição anda estavam paradas. Na primeira oportunidade que teve, a gente subiu em uma máquina, para retardar a ação até as famílias se organizarem", afirma.

"Ficamos uns 20 ou 30 minutos ali em cima, e daquele jeito: a gente na máquina e eles jogando spray de pimenta na gente, tentando de alguma maneira tirar a gente de lá. Aí nós descemos e o despejo começou", afirma Dalecio.

Moradores lutam contra ação de despejo na Rua dos Vianas, em São Bernardo do Campo (SP) - Divulgação/MTST - Divulgação/MTST
Moradores lutam contra ação de despejo na Rua dos Vianas, em São Bernardo do Campo (SP)
Imagem: Divulgação/MTST

A ação repercutiu na imprensa porque crianças de uma escola municipal, vizinha à ocupação, chegaram a passar mal com o gás de pimenta lançado pelos agentes. Questionada, a prefeitura informou que a ação foi necessária "para controlar princípio de tumulto provocado por integrantes de movimentos sociais, que atiraram pedras e pedaços de madeira".

O despejo desta área havia sido autorizado dias antes, pela Justiça, com o argumento de que o local fica à beira de um córrego e está sujeito a enchentes e outros problemas associados às chuvas.

Exceções

Desde a restrição imposta pelo STF, despejos têm sido autorizados com base no argumento de que a ocupação está em área de risco ambiental.

Esta foi uma das exceções que Barroso estabeleceu em junho, ao suspender os despejos. Outra situação em que o Supremo permite a desocupação é se ela for "absolutamente necessária para o combate ao crime organizado", como é o caso de condomínios residenciais dominados por facções.

Ambas as justificativas foram usadas pela Corte para referendar ordens de remoção. No final de setembro, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes manteve uma decisão que ordenou o despejo de cerca de 130 famílias de um terreno da Cteep (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista), na capital paulista.

A justificativa da decisão de primeira instância, acolhida por Moraes, foi a proximidade das casas com as linhas de transmissão de energia que passam pelo local, o que implicaria em "riscos de incêndio e descarga elétrica pelo rompimento de cabos".

Embora menos frequentes, também houve despejos fundamentados no fato de que a área era dominada por organizações criminosas. Em Guajará-Mirim (RO), uma desocupação foi autorizada pelo ministro Ricardo Lewandowski porque, entre outros motivos, uma operação policial no local havia apreendido armas e motosserras. A decisão de primeira instância afirmava que "um grupo criminoso orquestrou a invasão" do terreno.

Futuro incerto

A decisão de Barroso contra os despejos, em junho passado, foi tomada a pedido do PSOL. Em conversa com apoiadores, dias depois, o presidente Jair Bolsonaro (PL) atacou a medida tomada pelo ministro. "É o fim da propriedade privada", afirmou.

Foi a contragosto que o presidente promulgou, em outubro, a lei aprovada pelo Congresso que barrou despejos durante a pandemia. No mês anterior, Bolsonaro havia vetado a legislação, mas os parlamentares derrubaram o veto presidencial.

Ao pedir a abertura da ação no Supremo, o PSOL argumentou que cerca de 9.000 famílias haviam sido despejadas durante a pandemia, e outras 64 mil seguiam ameaçadas de remoção. De lá para cá, o número dobrou: segundo a Campanha Despejo Zero, que reúne vários movimentos sociais, hoje são 123 mil famílias no país nessa condição.

A regra do Supremo valia, a princípio, até 31 de dezembro do ano passado. No início daquele mês, porém, o ministro acatou um pedido de partidos e organizações para estender a proteção, que foi prorrogada até 31 de março.

Barroso levou em conta a persistência do risco de contaminação. A decisão foi referendada pelo plenário do STF.

Para movimentos sociais, porém, o país dificilmente terá até lá um cenário mais favorável. Uma das razões seria a tendência do poder público de oferecer apenas soluções paliativas às famílias envolvidas, o que prolonga o problema por tempo indeterminado. É o que avalia o advogado Felipe Vono, que acompanhou alguns casos que chegaram ao STF.

"O poder público, muitas vezes, não oferece vaga nem condições de abrigamento dessas famílias. Nesses abrigos, em geral, as famílias não podem mal podem levar suas coisas e, durante a pandemia, não têm nem condição de fazer o isolamento. Isso tudo terá que ser levado em conta em março", diz.