Agente prisional mantinha preso como 'escravo particular' em SC, diz MPSC
O MPSC (Ministério Público de Santa Catarina) investiga desde 2017 se um agente prisional aposentado transformou por cerca de 9 anos um preso que havia obtido o direito de prisão domiciliar em escravo particular em Itajaí (SC).
O caseiro Antônio Arnaldo dos Santos, o Tonho, admitiu, quando perdeu o direito da prisão domiciliar, em 2017, que recebia apenas moradia (veja abaixo) em troca dos serviços prestados a Galeno de Castro, sem contrapartidas financeiras. Tonho morreu quatro meses após voltar à prisão, quando tinha 42 anos.
Ele havia sido preso em agosto de 2006, ao confessar um assassinato cometido após uma briga de bar. Analfabeto, já havia prestado serviços sem receber para o agente no começo dos anos 2000, na construção da casa da família, na Praia Brava. Na região, era conhecido como o "preso do Galeno".
Enquanto cumpria a pena de 12 anos e 6 meses em regime fechado no presídio de Matadouros, hoje desativado, contraiu tuberculose pulmonar. Após cirurgia, internações e o implante de um dreno, foi autorizado pela Justiça em janeiro de 2008 a cumprir a pena em regime domiciliar na casa da irmã, desde que comprovasse o estado de saúde e a evolução do tratamento.
Quando voltou à prisão em 2017, Tonho relatou à delegacia da cidade que, dois meses após a concessão da domiciliar, Galeno de Castro apareceu na residência da irmã do caseiro e afirmou que, a partir de então, era "preso dele" e não mais do estado. O agente não tinha permissão ou ordem judicial.
Como não podia sair da casa para comprovar sua situação, Tonho teve a prisão domiciliar anulada em março de 2015. O motivo era justamente não estar cumprindo regularmente a condição imposta de comparecer na vara de execuções penais de Itajaí para informar seu estado de saúde.
Segundo a denúncia do MPSC, Galeno de Castro sabia desta obrigação, tanto que durante dois anos protocolou documentos atestando o estado de saúde do caseiro, mas deixou de prestar as informações —o que gerou o mandado de prisão de Tonho cumprido em fevereiro de 2017.
Por meio do seu advogado, Galeno de Castro alegou que Tonho era tratado como se fosse da família e foi enterrado junto com seu filho, além de ter pagado as despesas funerárias do enterro do caseiro, fatos que ele pretende demonstrar com documentos durante o processo judicial que aguarda decisão da Justiça na Vara da Fazenda Pública de Itajaí.
O caso é gravíssimo. Em 24 anos de carreira pública nunca presenciei situação como esta em que um agente público converte um ex-interno do sistema penitenciário praticamente em seu escravo particular"
Diogo Ringenberg, procurador do MPC (Ministério Público de Contas) de Santa Catarina
Dormitório: um canil
A investigação seguiu para o MPT (Ministério Público do Trabalho) da 12ª Região a partir de depoimento prestado na segunda prisão do caseiro, na delegacia da cidade (veja o vídeo). Tonho contou que cuidava da limpeza da casa e do pátio de Galeno, cozinhava e tratava de 17 cães e três gatos. Dormia num quarto sem banheiro, uma espécie de canil junto com seis cachorros e comia da mesma comida que ele mesmo preparava para os animais.
Lá era sempre primeiro os cachorros
Tonho, em depoimento à Corregedoria da Secretaria de Justiça e Cidadania
O caseiro relatou que era proibido de sair da casa, inclusive para frequentar a igreja que ficava próxima, "mesmo se fosse levado pelos missionários". Disse ter recebido somente R$ 100 por ano até ser preso novamente. Tinha que pedir o dinheiro e dizer sempre que queria ver a família. Suas visitas à irmã foram raras, rápidas ou acompanhadas pelo agente prisional, segundo os relatos dos parentes ouvidos pelo promotor do MPSC
Enquanto imaginava estar cumprindo a pena e sem saber que havia um mandado de prisão contra ele, Tonho disse ter feito trabalhos escondidos na vizinhança para ganhar roupas, "algum dinheiro" e comida, itens que escondia do "patrão" com medo de ser repreendido.
Ele afirmou que começava o trabalho por volta das 7h30 e parava só às 21h. No domingo, trabalhava até as 16h, mas não folgou em feriados e nunca parou no Natal ou no Ano Novo. Por várias vezes, disse o caseiro, tinha que acordar de madrugada para verificar como estavam os cachorros.
Em novembro de 2018, o MPSC denunciou o agente prisional por improbidade administrativa depois de ouvir parentes do caseiro, amigos dele, vizinhos e o servidor público acusado, além de ter acesso e citar os depoimentos de Tonho e de Galeno de Castro na investigação preliminar aberta na Secretaria de Justiça e Cidadania em 2017.
O requerido fez o uso do cargo público de agente penitenciário, mesmo afastado de suas funções, para manter segregado e sob seu comando um apenado em sua residência, o que é mais agravante, não lhe oferecendo qualquer tipo de remuneração tampouco descanso, em condições subumanas para que este continuasse seu tratamento de saúde"
Jackson Goldoni, promotor, na denúncia que ainda não foi julgada pela Justiça
O MPF tem, na avaliação do promotor, competência para apurar casos deste tipo definida por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Procurado pelo UOL, o MPF em Santa Catarina informou que não existe nenhuma investigação em andamento contra Galeno.
A SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) publicou uma portaria abrindo um procedimento disciplinar contra o servidor público já aposentado no dia 10 de janeiro deste ano. O MPSC pede que o acusado tenha sua aposentadoria anulada.
A decisão de abrir o processo disciplinar assinado pelo secretário da SAP, Leandro Lima, aconteceu três anos e oito meses depois que uma sindicância da Secretaria de Justiça e Cidadania recomendou a abertura de uma investigação interna contra o servidor —um processo administrativo disciplinar que poderia resultar na demissão de Galeno de Castro.
"Concluímos também que, apesar de os fatos expostos terem ocorrido fora do local de serviço do servidor, Antonio conhecia o sr. Galeno como agente penitenciário, tendo Galeno se aproveitado da função exercida para coagir Antônio a permanecer 'segregado' em sua residência, realizando os trabalhos a que era submetido", diz o documento da Corregedoria da SJC em 9 de maio de 2018.
Questionada sobre os mais de três anos em que a pasta levou para abrir o processo disciplinar contra o servidor aposentado, a SAP informou apenas que o "processo correcional encontra-se dentro do prazo estabelecido pela legislação".
Tratamentos de saúde eram dispendiosos, diz acusado
Galeno de Castro defendeu-se das acusações em petição apresentada pelo seu advogado no processo aberto pela denúncia pelo MPSC em fevereiro de 2019. Alega que Tonho foi para sua casa "por livre vontade", pois tinha sido "relegado pela família pelo seu precário estado de saúde, com o preconceito de um tuberculoso ex-alcoólatra".
O servidor público aposentado argumenta ainda que comunicou ao fórum que o preso estava em sua residência cumprindo prisão domiciliar, "sempre cuidou da saúde dele" e "era tratado como membro da família". Não há, no entanto, registro formal na Justiça de que Tonho estava na casa de Galeno. Em vídeo gravado em audiência no MPSC após a morte de Tonho, Galeno afirma que "o presídio inteiro sabia" da situação. No entanto, documento de 2018 da Corregedoria Geral do órgão que é hoje a SAP afirma que Galeno não tinha autorização "para exercer funções dentro de casa.
"Os cuidados de saúde com regime domiciliar com Antônio eram dispendiosos", diz a defesa. "Fiscalização de prisão domiciliar deveria ser do estado, do Ministério Publico que só acusa, do Judiciário, porém em nenhum momento é levantado como era fiscalizada a pena do falecido Antônio, como era feito o tratamento de saúde do apenado, que pagava pelos remédios e bolsas de drenagem", diz o defensor Valdir Andrade.
O advogado diz que o seu cliente também foi mais uma vítima do sistema prisional de Santa Catarina. "[O] estresse por falta de estrutura no trabalho como agente penitenciário o levou a insanidade, ao ponto que teve que ser aposentado por invalidez, como problemas mentais, pois o seu local de trabalho sempre foi insalubre."
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