Empresa de motoboy com capital de R$ 3,5 mi ganha contratos na Saúde no RJ
Um motoboy, que atualmente se apresenta nas redes sociais como vendedor de capas para celular, é o dono de uma empresa com capital social de R$ 3,5 milhões que ganhou quatro contratos no ano passado para fornecer refeições a unidades públicas de saúde no estado do Rio.
A Everton Fornecimento de Alimentos, que tem como único sócio Victor Everton de Carvalho Mendes, recebeu no ano passado ao menos R$ 1 milhão do governo estadual, por meio da OS (Organização Social) Hospital Psiquiátrico Espírita Mahatma Gandhi, em troca de serviços prestados ao Instituto do Cérebro Paulo Niemeyer, no centro do Rio.
A empresa também atuou no ano passado, por meio da mesma OS, no Hospital Municipal Desembargador Leal Júnior, em Itaboraí, na região metropolitana do Rio. Os valores pagos à firma Everton não foram divulgados.
A empresa ainda ganhou sem licitação dois contratos (no valor total de R$ 3,2 milhões) da RioSaúde —empresa pública da Prefeitura do Rio— para atuar em dez unidades básicas de saúde. Os contratos foram, contudo, rescindidos em dezembro, uma semana após as assinaturas.
Ao UOL, Mendes afirmou que a empresa sempre cumpriu seus serviços e não quis explicar como conquistou uma firma com capital de R$ 3,5 milhões trabalhando como motoboy e vendedor de capas para celular. "Eu não tenho que te dar satisfação de nada", disse, irritado, à reportagem.
A OS Mahatma Gandhi foi procurada pela reportagem por telefone e por e-mail, mas não respondeu. Caso se manifeste, a resposta será publicada nesta reportagem.
Mendes se apresentou como motoboy em 2019 em um processo judicial ao qual responde (leia mais a seguir).
Recentemente, Mendes passou a anunciar a venda de capas personalizadas de celular em seus perfis no Instagram e Facebook.
A Everton Fornecimento de Alimentos foi criada por ele em dezembro de 2018, com capital social de R$ 96 mil.
Em janeiro de 2021, saltou para R$ 700 mil e, dois meses depois, chegou a R$ 3,5 milhões.
Contratos não divulgados
A OS Mahatma Gandhi não divulgou em seu portal da transparência os contratos assinados com a Everton para o Instituto do Cérebro e o Hospital Municipal Desembargador Leal Júnior.
Mas o UOL localizou em relatórios mensais da OS, tabelas com referências a pagamentos para a empresa que somam R$ 1,4 milhão, entre junho e dezembro, pelo serviço prestado ao Instituto do Cérebro.
A Secretaria Estadual de Saúde, à qual o instituto é subordinado, informou ao UOL um valor diferente: R$ 1,024 milhão. A pasta afirmou que os preços pagos pelo fornecimento das refeições foram "compatíveis com os praticados nos demais contratos de unidades hospitalares".
Em processo interno, a secretaria apura contudo possíveis irregularidades nas despesas pagas pela OS à Everton. Entre os problemas detectados, também está a forma de seleção da firma pela OS —de quatro propostas de preços apresentadas, duas nem sequer continham CNPJ (uma delas era a de Everton, que foi a escolhida).
A empresa não possui mais contratos em vigor com recursos estaduais. Desde fevereiro, uma nova OS substituiu a Mahatma Gandhi na gestão do Instituto do Cérebro.
Sem administrar unidades de saúde da rede estadual, a Mahatma Gandhi é hoje alvo de um processo de desqualificação que pode impedi-la de assinar novos contratos.
Em Itaboraí, a Everton responde a ao menos duas ações na Justiça do Trabalho —ex-funcionárias da empresa reclamam não ter recebido verbas rescisórias após demissão sem justa causa do Hospital Municipal Desembargador Leal Júnior. Ainda não há sentença nos processos.
A prefeitura disse que a empresa não presta mais serviços na unidade, que continua sendo gerida pela mesma OS. O município não quis informar quanto a Everton recebeu pelos serviços prestados.
'Empresa não tinha condição de prestar o serviço'
A Secretaria Municipal de Saúde, pasta à qual a RioSaúde é subordinada, explicou por que rescindiu em dezembro dois contratos emergenciais no valor de R$ 3,2 milhões com a Everton.
"Quando foi verificado que a empresa não tinha condição de prestar o serviço, os contratos não prosperaram e ela foi prontamente substituída", relatou a pasta ao UOL, por meio de nota.
A secretaria disse que a empresa não recebeu nenhum pagamento pelo tempo de serviço prestado.
A RioSaúde abriu procedimento para apuração das falhas no serviço, o que pode culminar em multa e suspensão do direito de participar de novas contratações pelo órgão.
Preso após reconhecimento por foto
O dono da empresa ficou conhecido em 2019 após ser preso por suspeita de roubo em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Na ocasião, o reconhecimento foi feito apenas por uma foto em sua rede social. A decisão foi da juíza Lívia Bechara de Castro, da 1ª Vara Criminal do município.
Na ocasião, a família de Mendes disse que ele foi preso injustamente. Ele foi detido quando tirava a segunda via de sua carteira de identidade, mas solto após duas semanas.
Após a repercussão do caso, o juiz Francisco Emílio de Carvalho Posada, também da 1ª Vara Criminal de Nova Iguaçu, reverteu a decisão inicial e entendeu que o reconhecimento, feito por cinco testemunhas por meio da foto, não era prova suficiente para mantê-lo preso. Também foi rejeitada a denúncia do Ministério Público contra Mendes.
A Justiça deu razão inicialmente à defesa do motoboy porque as imagens de uma câmera de segurança no local do crime mostram que o autor do roubo tem características físicas que ele não possui, como uma tatuagem no antebraço esquerdo.
Ainda assim, em maio de 2020, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio reverteu a decisão de primeira instância que rejeitou a denúncia do MP e determinou o prosseguimento do processo contra Mendes.
O voto da relatora Rosa Helena Penna Macedo Guita afirma que os reconhecimentos por parte das testemunhas devem "ser apurados no curso da ação penal condenatória".
A defesa pede agora perícia das imagens das câmeras de segurança que mostram o autor do crime. Uma nova audiência foi marcada para maio.
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