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'Agrishow não ligou pra saber se estou vivo', diz homem que perdeu mão

Seu João teve a mão esquerda amputada e quase perdeu a perna esquerda após choque elétrico na Agrishow - Arquivo Pessoal
Seu João teve a mão esquerda amputada e quase perdeu a perna esquerda após choque elétrico na Agrishow Imagem: Arquivo Pessoal

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

07/05/2022 04h00

"A Agrishow não chamou socorro e até hoje não me ligou", lamenta o eletricista João Luciano Martins Penha, 49, que precisou amputar a mão esquerda ao receber uma descarga elétrica de 13.200 volts enquanto ajudava a montar a 27ª Agrishow 2022, a maior feira de tecnologia agrícola do Brasil, em Ribeirão Preto, a 315 km de São Paulo.

Seu João ganhou na Justiça o direito a uma prótese e pede agora indenização que uma pode superar R$ 3 milhões.

Após o acidente, o MPT (Ministério Publico do Trabalho) inspecionou a feira e recorreu à Justiça do Trabalho, que na última quarta-feira (4) interditou a desmontagem das instalações da Agrishow. O evento, que contou com a participação do presidente Jair Bolsonaro (PL) na abertura, movimentou R$ 11,2 bilhões entre 26 e 29 de abril.

25.abr.2022 - O presidente Jair Bolsonaro acompanhado de Tarcísio de Freitas e Braga Netto durante visita à 27º Agrishow - Feira Internacional de Tecnologia Agrícola em Ação - Isac Nóbrega/PR - Isac Nóbrega/PR
25.abr.2022 - O presidente Jair Bolsonaro acompanhado de Tarcísio de Freitas e Braga Netto durante visita à 27º Agrishow
Imagem: Isac Nóbrega/PR

O pessoal no Hospital das Clínicas me disse que, de cem pessoas que passam por isso, só uma sobrevive. Eu renasci."
João Luciano Martins Penha, eletricista

João contou ao UOL que trabalha na feira desde 1997, quando a empresa onde trabalha —a José Mario Muniz de Faria ME— foi contratada pela BTS, organizadora da Agrishow.

A reportagem procurou a empresa por e-mail, telefone e enviou mensagens ao WhatsApp do dono, do filho, da irmã e do responsável pelo escritório da empresa. O advogado entrou em contato, mas "por falta de documentação" não enviou resposta até a publicação desta reportagem.

Ao UOL, a BTS —razão social Informa Markets— lamentou "o acidente isolado" e afirmou que o "operário foi imediatamente socorrido, levado a um hospital onde recebeu a assistência necessária".

Agrishow 2022 movimentou R$ 11,2 bilhões em cinco dias - Divulgação - Divulgação
Agrishow 2022 movimentou R$ 11,2 bilhões em cinco dias
Imagem: Divulgação

"Quase perdi a perna também"

João conta que instalava as redes elétricas do evento no dia 24 de fevereiro, quando foi informado por outro funcionário de que ele já estava autorizado a subir em um dos postes, cuja energia estaria desligada.

"Quando comecei a mexer, levei um choque de 13.200 volts. Fiquei pendurado a 12 metros de altura, preso pelo cinto de segurança", afirma. "Quando retomei a consciência, pedi para um caminhão ali perto me tirar do poste."

Ao contrário do que diz a BTS, João afirma que o atendimento demorou a chegar.

Seu João deve receber uma prótese, conforme decisão judicial liminar - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Seu João deve receber uma prótese, conforme decisão judicial liminar
Imagem: Arquivo Pessoal

"Não tinha ambulância na feira. Quem pediu ajuda foi o rapaz da fibra ótica, não foi nem a Agrishow." Ele diz que o acidente ocorreu às 14h56, o socorro apareceu às 15h36 e a entrada no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto foi às 16h.

O eletricista ficou 56 dias internado. "Como os dedos da mão não reagiam depois de uma semana, tiraram três dedos e meio. Depois de mais 15 dias tiveram de amputar a mão."

Ele quase perdeu a perna esquerda também. "Na perna, foram tirando a carne morta queimada até chegar no osso. Depois usaram os músculos das minhas costas e gordura da barriga para fazer o enxerto. Ainda não consigo andar."

A Agrishow não entrou em contato comigo até hoje nem pra saber se eu estou vivo."
João Luciano Martins Penha, eletricista

Advogado de João, Leonardo Moura Santana pede na Justiça uma indenização por dano moral (R$ 1 milhão), dano material (R$ 1,4 milhão) e dano estético (R$ 1 milhão), em um processo que pode levar até cinco anos na Justiça se as empresas processadas recorrerem, prevê.

"No dia 25 de abril, a Justiça concedeu liminar [decisão provisória e urgente] determinado o fornecimento de uma prótese biomecânica avaliada em R$ 325 mil", afirma o advogado. "Ainda não recorreram. Eles têm até o final de maio para fornecer, ou pagarão multa diária de mil reais."

Ele afirma que a José Mario Muniz de Faria ME não depositava o FGTS de João, nem recolhia INSS, além de pagar em carteira um valor abaixo da remuneração oficial. "Isso pode comprometer o benefício previdenciário do meu cliente", diz Santana.

"Meu patrão pediu para eu desistir do processo, mas não posso por que como vou viver sem conseguir trabalhar?", questiona João, que é casado e tem cinco filhos.

Funcionários desprotegidos

A decisão da juíza Andressa Venturi da Cunha Weber de interditar a desmontagem da Agrishow ocorreu após o MPT realizar uma vistoria na feira para verificar o cumprimento de um acordo judicial de 2013 sobre segurança do trabalho firmado com as organizadoras do evento.

Segundo a procuradoria, "a inspeção flagrou operários 'soltos' no alto das estruturas, sem qualquer proteção contra quedas. Em alguns casos, os trabalhadores se locomoviam pelas beiradas, no topo dos estandes, sem a ancoragem do cinto e, muitas vezes, sem o uso do cinto de segurança".

A força-tarefa também identificou trabalhadores posicionados no cume das escadas, sem proteções adequadas, em alturas superiores a dois metros de altura, além de andaimes irregulares, sem proteção contra quedas e não fixados às estruturas dos estandes."
Ministério Público do Trabalho em Ribeirão Preto

Trabalhadores durante montagem da Agrishow 2022  - MPTDivulgação - MPTDivulgação
Trabalhadores durante montagem da Agrishow 2022
Imagem: MPTDivulgação

Sobre a interdição, a BTS afirma que "mantém contrato com empresa especializada na prestação de serviço de segurança e medicina do trabalho para fiscalização de atividades realizadas por empresas envolvidas no processo de montagem e desmontagem".

Nas instalações elétricas, os fiscais flagraram "condições inseguras de funcionamento, com partes energizadas expostas e acessíveis para trabalhadores não autorizados (...) e operários sem equipamentos de proteção individual, como luvas e capacetes".

Ao saber do acidente com João, "o Ministério Público pediu uma intervenção judicial para paralisação das atividades", afirmou ao UOL o procurador Ronaldo Lira.

Quando os laudos periciais foram concluídos, vamos ingressar em juízo pedindo providencias cabíveis e responsabilidades de todos os organizadores da feira."
Ronaldo Lira, procurador do MPT

João reclama do "descaso" da Agrishow e da empresa em que trabalhava desde 1989.

Eu confesso que não entendo como uma feira como a Agrishow contrata uma firma como a que eu trabalhava, que não recolhe nem FGTS."