'Não queremos sair': 140 mil famílias esperam decisão do STF sobre despejos
Era junho de 2020 quando Valdirene Frazão, de 49 anos, ficou desempregada devido à pandemia. Sem lugar para morar, ela foi com o marido e dois filhos para o Jardim Julieta, um terreno na zona norte de São Paulo. Hoje, dois anos depois, a ocupação é habitada por 840 famílias cujo futuro depende do STF (Supremo Tribunal Federal): a Corte precisa decidir até amanhã se mantém ou derruba a proibição de despejos no país.
"A gente vem se organizando para morar aqui da melhor forma possível. Temos luz, água, esgoto e estamos melhorando a qualidade das casas. Nossa ideia é permanecer, não queremos sair", conta Valdirene. A área, que pertence à prefeitura, é alvo de um pedido de reintegração de posse, mas o processo está suspenso devido à decisão do Supremo, que já foi prorrogada duas vezes.
A situação de Valdirene não é isolada. Segundo a campanha Despejo Zero, que reúne dezenas de movimentos sociais, mais de 142 mil famílias no Brasil correm risco de perderem suas casas a depender da decisão do STF. O número cresceu mais de sete vezes desde o início da pandemia, em março de 2020, quando havia 18 mil famílias ameaçadas.
Apesar desse panorama, o país passou mais de um ano durante a crise sanitária sem proteção legal ou jurídica contra as remoções. Foi só em abril de 2021, a pedido do PSOL, que o ministro Luís Roberto Barroso determinou a suspensão das desocupações em áreas urbanas e rurais.
Segundo a decisão de Barroso, que foi confirmada pelo plenário do Supremo, foram proibidas todas as remoções de moradias em áreas ocupadas antes da pandemia, exceto se estivessem em áreas de risco de desastres, como deslizamentos, ou em outras situações específicas, como o domínio do local por facções criminosas.
A suspensão às desocupações, que inicialmente valia por seis meses, já foi renovada por duas vezes, em dezembro do ano passado e em março de 2022. Nesse período, o Supremo reverteu dezenas de decisões judiciais de outras instâncias que haviam determinado os despejos. No caso do Jardim Julieta, a Corte não chegou a atuar, porque a própria Justiça paulista suspendeu o processo.
A decisão de prorrogar ou não a medida que proíbe as desocupações caberá inicialmente a Barroso, relator do caso. Seja qual for o resultado, porém, o ministro deverá submetê-lo aos colegas em plenário, como ocorreu nas prorrogações anteriores. A discussão deverá ocorrer por meio de julgamento virtual, em que os ministros depositam seus votos no sistema do tribunal.
'Sem dinheiro para nada'
Até o início da pandemia, Valdirene morava em um único cômodo com o marido de 60 anos, um filho de 26 e uma filha de 13, na casa da mãe. A crise sanitária, porém, atingiu diretamente o mercado de eventos, para o qual ela prestava serviços. Como a única renda da família passou a ser a aposentadoria do marido, tiveram que deixar o local em junho de 2020.
"Eu desempregada, sem dinheiro para absolutamente nada, e bateu o desespero mesmo: como a gente vai pagar as contas? Como a gente vai comer?", relembra Valdirene. Com dinheiro do auxílio emergencial, pago pelo governo a partir de maio, a família ergueu uma casa de madeira e lona, que aos poucos recebeu benfeitorias.
"Quando nós chegamos, junto com umas trinta famílias, o terreno estava todo sujo, porque era um local de descarte de entulhos. A gente veio com a cara e a coragem, ferramentas nas costas e limpamos tudo. Foi sofrido, porque fazia muito frio. É uma coisa que eu nunca tinha feito", conta.
A crise fez com que o número de moradores disparasse. Em poucos dias, segundo Valdirene, já estavam instaladas no local as cerca de 840 famílias que permanecem até hoje. "Parecia Serra Pelada. Sabe aquela imagem, do pessoal quando descobriu o ouro, todo mundo fazendo buraco? Era igualzinho isso aqui. Foi muito rápido", diz ela.
Com o tempo, os moradores fizeram obras de improviso para terem acesso a esgoto, luz e água encanada. Em dezembro de 2020, ainda antes da decisão do STF, o UOL publicou o documentário "É pandemia, para onde vou?", que conta a história da ocupação. Àquela época, os moradores já estavam ameaçados de despejo, mas o caso era discutido no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo).
O plano do poder público para a área é justamente a construção de casas populares. A empresa SP Urbanismo, que pertence à prefeitura, planeja fazer no local 1580 unidades habitacionais, destinadas a comunidades do entorno e famílias removidas de áreas de risco. Mas os moradores da ocupação, se estiverem cadastrados em programas da prefeitura, serão contemplados em outros locais.
Futuro incerto
A campanha Despejo Zero, que acompanha o panorama das remoções desde o início da pandemia, estima que a população de rua no país, hoje estimada em 260 mil pessoas, pode quadruplicar se forem concretizados todos os despejos monitorados pelo grupo.
"A moradia é a porta de entrada para os direitos. Sem ela, as famílias podem perder o vínculo com a escola, com os postos de saúde, com os demais serviços sociais afetando sobretudo as crianças", afirma um comunicado divulgado pela campanha, no início do mês, que pede ao STF uma nova prorrogação da suspensão dos despejos.
A DPU (Defensoria Pública da União), que acompanha o processo, também pediu ao Supremo que haja uma nova extensão do prazo. Caso a Corte decida não prorrogá-lo, o órgão defende que sejam criadas "regras de transição" para as situações de despejo coletivo, como seria o caso do Jardim Julieta.
"Ainda que evidente a situação de crise vivenciada pela população de baixa renda potencialmente afetada pela medida, faz-se necessário o estabelecimento de condicionantes para o cumprimento das remoções compulsórias", argumenta a DPU. "A realização de remoções forçadas sem a observância das condicionantes é apta a ameaçar o direito ao mínimo existencial das famílias em situação de vulnerabilidade".
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