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Morte de PM indica ação de vingança que deixou 16 mortos no Alemão

Moradores do Alemão levam corpos para unidades de saúde após ação policial - JOSE LUCENA/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO
Moradores do Alemão levam corpos para unidades de saúde após ação policial Imagem: JOSE LUCENA/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO

Do UOL, no Rio

22/07/2022 17h57Atualizada em 22/07/2022 19h11

A cronologia da operação de ontem no Complexo do Alemão indica que as 16 mortes de civis ocorreram como vingança das tropas policiais pela morte do cabo da PM Bruno de Paula Costa. O governador Cláudio Castro (PL) e os comandos das polícias Civil e Militar defenderam a atuação dos agentes.

De acordo com registro de ocorrência obtido pelo UOL, Costa foi baleado às 5h39, ainda no início da incursão de homens do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) nas comunidades do Complexo do Alemão. Lotado na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Nova Brasília, o PM foi ferido gravemente durante um ataque de traficantes à base.

O policial foi socorrido imediatamente e deu entrada já morto no Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, às 6h, segundo a unidade. A partir daí, a violência da ação policial se intensificou, segundo relatos de moradores e ativistas que atuam no Complexo do Alemão.

Escalada da violência

Às 7h, pouco mais de uma hora após o policial ser baleado, o ativista Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, relatou que policiais estavam invadindo casas de moradores para utilizarem como plataforma de tiros.

"Com isso, o medo das pessoas é que a operação mergulhe na ideia de 'operação vingança', que acaba inflamando ainda mais a coisa e violando muitos moradores nesse caos", escreveu ele na ocasião.

Pouco depois, perto das 8h, Letícia Salles, 50, foi baleada dentro de um carro na Estrada do Itararé, um dos acessos ao Alemão. Moradora do Recreio dos Bandeirantes, ela visitava o namorado e estava acompanhada dele e de outro parente. Familiares de Letícia afirmam que um policial atirou contra o veículo.

Por volta das 10h, com as notícias sobre o número de mortos ainda desconhecidas, dezenas de mototaxistas protestaram nos acessos ao complexo de favelas.

Apenas no início da tarde corpos começaram a ser retirados por moradores de dentro da comunidade. Cobertos com lençóis, eles foram transportados de maneira improvisada em carros e caminhonetes e levados para a UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) do Alemão.

Outro dado que corrobora a tese de vingança é o número de armas apreendidas. Apesar de a PM afirmar que 15 homens eram "suspeitos" de envolvimento com o tráfico da região e que foram mortos em confronto com os policiais, a operação terminou com apenas sete armas apreendidas, cinco delas fuzis.

Em entrevista à imprensa no fim da tarde de ontem, o subsecretário operacional da Polícia Civil, Ronaldo Oliveira, atribuiu a responsabilidade pelas mortes ao tráfico local. "Infelizmente, eles escolheram atingir os policiais", disse ele, afirmando também que preferia ter prendido os suspeitos.

A PM afirmou, em nota, que policiais foram atacados em vários pontos do Complexo do Alemão. O tenente-coronel Ivan Blaz, porta-voz da corporação, disse que a munição dos policiais do Bope acabou em duas horas de incursão, por conta da intensidade dos confrontos.

Anteriormente, a Polícia Civil havia informado que Roberto de Souza Quimer, 38, era um dos mortos, mas retificou a informação às 18h de hoje (22). O UOL atualizou todas as reportagens sobre o caso com a informação correta.

Recorde de mortos em operações vingança em 2021

Especialistas ouvidos pelo UOL apontam que a dinâmica relatada durante a operação no Complexo do Alemão é muito parecida com a ação mais letal da história do Rio de Janeiro, realizada pela Polícia Civil em maio do ano passado na favela do Jacarezinho.

Naquela ocasião, após um agente ser morto logo no início da incursão por traficantes, os policiais mataram 27 pessoas. Há indícios de que suspeitos foram mortos quando estavam desarmados e rendidos e ao menos um caso em que uma vítima era comprovadamente inocente —um jovem com deficiência que era incapaz de portar uma arma, segundo as investigações do Ministério Público.

Levantamento feito pelo Geni (Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos) da UFF (Universidade Federal Fluminense) mostrou que, em 2021, o Rio registrou o maior número de mortos em ações policiais de vingança —realizadas após a morte de policiais ou ataques a unidades e viaturas das polícias— em 14 anos.

Foram 47 mortos em 33 ações desse tipo —27 deles no Jacarezinho. E os dados indicam que 2022 pode ter um patamar de letalidade semelhante. Até ontem, 11 operações resultaram em 21 mortos.

O pesquisador Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF, explica que esse tipo de ação tem se intensificado nos últimos anos devido ao descontrole das polícias.

"As chamadas operações vingança tendem a ser muito mais letais do que as demais. São quatro vezes mais letais do que as feitas para cumprir mandados de busca e apreensão, segundo nossos dados. Isso mostra claramente que se já temos dificuldades no controle do uso da força, quando morre um policial isso se torna praticamente impossível", avalia.

"É importante dizer que operações de vingança são ilegais. As forças policiais têm que estar preparadas para atuar seguindo os mesmos protocolos, mesmo quando há uma situação trágica como a morte de um policial. Esse tipo de operação demonstra claramente que não há o devido preparo e respeito aos protocolos."
Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF

Pablo Nunes, coordenador adjunto do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Cândido Mendes, destaca que esse tipo de ação é o oposto da missão constitucional das forças de segurança.

"Essas operações têm ficado cada vez mais frequentes. É uma prática antiga e recorrente. Quando a polícia decide pagar com morte a morte de um policial, ela está deixando bem claro que a sua atuação não irá se orientar pelo Estado de Direito e pelo cumprimento das leis. Quando se coloca como um agente da letalidade para dar uma resposta, acaba, de certa forma, indo no sentido contrário da sua razão de ser, que é garantir o cumprimento das leis e proteger os cidadãos", critica.

"A gente não minimiza de maneira nenhuma a morte de um policial, é algo profundamente desafiador e que traz questões importantes do ponto de vista da segurança pública. Mas existem outros meios de responder que não seja a letalidade. Quando a corporação resolve responder com morte e violência à morte de um policial, ela própria está se equiparando às forças que estão fora da lei."
Pablo Nunes, coordenador adjunto do Cesec

Em comunicado, Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil, cobrou que seja feita uma investigação independente pelo Ministério Público e pelo Ministério Público Federal para apurar as circunstâncias das mortes.

"A investigação e responsabilização em caso de abuso policial são essenciais para romper o ciclo de violência que coloca moradores e a própria polícia em risco, com consequências desastrosas para a segurança pública", observa.