Milícias repetem tráfico com funks proibidões: 'Tem mais fuzil que Rússia'
Funk proibidão, ostentação de armas e ameaças a inimigos nas redes sociais. Essas práticas —introduzidas nos anos 90 pelo tráfico de drogas em bairros e comunidades do Rio de Janeiro— agora também são adotadas por integrantes do Bonde do Zinho, a maior milícia do estado.
A mudança de postura do grupo paramilitar indica uma aproximação da cultura propagada por traficantes, segundo especialistas ouvidos pelo UOL. Músicas que exaltam a milícia dão à organização criminosa uma dimensão cultural que seduz jovens por meio de um processo de pertencimento e funcionam como uma estratégia de "pão e circo" em comunidades.
O UOL dá sequência hoje à série de reportagens sobre milícias após publicar ontem o vídeo Vizinhos do Mal —uma produção do UOL Notícias e MOV, a produtora de vídeos do UOL— em que três pessoas ameaçadas de morte por milicianos no Rio contam pela primeira vez como esses criminosos destruíram a vida delas (veja o vídeo na abertura desta reportagem).
Fuzis e incitações a guerra contra milícia rival. A maior exposição dos milicianos acontece em um momento em que os grupos paramilitares, compostos entre outros por policiais e ex-policiais, expandem seus negócios e territórios no Rio.
Um vídeo publicado em redes sociais em novembro de 2021 (veja abaixo) ilustra bem o fato de milicianos terem abandonado o perfil considerado discreto, sem ostentação de armas.
No vídeo, nove milicianos do Bonde do Zinho com trajes pretos semelhantes às fardas do Bope (Batalhão de Operações Especiais), coletes à prova de balas e capuzes exibem 12 armas de grosso calibre —a maioria fuzis— em uma clara demonstração de força.
Eles provocam Danilo Dias Lima, o Tandera —que abriu uma dissidência no grupo em dezembro de 2020. O homem que parece ser o líder exalta a milícia —"Só fuzileiro naval, porra! É o Bonde do Zinho, caralho"—, enquanto outro repete o jargão do Bope —"Caveira!"— e diz ser "caçador de Tandera".
A milícia é comandada hoje por Luis Antonio da Silva Braga, o Zinho, terceiro integrante da família Braga a assumir o controle do grupo —seus irmãos Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes, e Wellington da Silva Braga, o Ecko, foram mortos em operações policiais em 2017 e 2021, respectivamente.
Em guerra contra a milícia de Tandera e com rixa constante com o CV (Comando Vermelho), o Bonde do Zinho controla hoje boa parte da zona oeste da capital —ao todo, os 11 bairros sob influência da organização criminosa concentram quase 1 milhão de habitantes.
Funks exaltam "Complexo da Zona Oeste". A propaganda do Bonde do Zinho está muito atrelada ao complexo de favelas formado pela milícia nos bairros de Santa Cruz, Paciência, Três Pontes —de onde os irmãos surgiram para o mundo do crime—, Antares, Rodo, Aço e Cesarão. Todas essas comunidades foram tomadas do Comando Vermelho nos últimos anos.
Chamadas de Complexo da Zona Oeste em proibidões, as favelas mantêm venda de drogas —característica introduzida pela família Braga na milícia— e abrigam bailes funk.
A autoria dos proibidões —funks que exaltam o crime com uso de linguagem ofensiva— é outro indicador da mudança de perfil das milícias, cujos integrantes costumavam reprimir o funk e associá-lo a "coisa de vagabundo".
As letras das músicas refletem a constante tensão na região, alvo de promessas de retomada pelo CV e de invasões pela milícia rival. Na letra de um dos funks, publicada por um integrante do Bonde do Zinho em uma rede social em 11 de agosto, há um recado claro para os traficantes.
Diz que vai voltar para o Rodo/ Essa porra não é bagunça/ Porque a Tropa do Zinho/ Tem mais fuzil que a Rússia."
Trecho de funk proibidão da milícia
Na esteira da popularização dos proibidões nos bailes da região, surgem MCs e DJs especializados nesse tipo de cântico de facção —a mesma coisa ocorre desde os anos 1990 com o CV.
Um dos alvos favoritos desses autores é o funkeiro Poze do Rodo —hoje fenômeno nas redes sociais, ele é oriundo da Favela do Rodo e já compôs proibidões exaltando o Comando Vermelho. "Vai zoando que nós tá aí/ Esperando o Poze do Rodo/ Se fechar em Santa Cruz/ Vai ver os AK cuspindo fogo", diz a letra de um funk.
Proibidões como "pão e circo" em favelas da milícia. Para o sociólogo José Claudio de Souza Alves, a exposição nas redes sociais revela um novo momento dos milicianos, que se sentem empoderados pelo contexto político do país.
"Após a CPI das Milícias [2008] e das prisões dos principais líderes, os milicianos vão para um perfil mais recatado. Não se via tanto essa ostentação, mas, a partir de 2018, já naquele momento da intervenção federal [na segurança pública do Rio], pudemos ver esse perfil de exposição ganhar força."
Para o professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e um dos principais estudiosos do surgimento das milícias, a adoção de práticas culturais, como os proibidões, representam uma estratégia de dominação das comunidades para além da opressão armada.
Essa inflexão ocorre quando percebem que para manter, ampliar e expandir para outros ramos de negócio era necessário ter essa dimensão do benfeitor, do consenso. O baile, as festas e o funk são o pão e circo deles. Quando estão na disputa com os outros grupos armados, precisam marcar essa diferenciação [cultural] com o tráfico. Quando alcançam esse patamar onde são hegemônicos, aí não importa mais estar nessa lógica da repressão, importa muito mais ser o benfeitor."
José Claudio de Souza Alves, sociólogo
"O proibidão da milícia deve ser uma forma de suscitar pertencimento nas comunidades", analisa o musicólogo Carlos Palombini, da Escola de Música da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
O professor —que estuda há décadas o fenômeno dos proibidões no funk carioca— observa também que a apropriação pelas milícias esvazia o proibidão de uma de suas principais marcas: a oposição ao Estado, na figura das polícias e dos governantes.
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