Exército diz não saber tamanho do arsenal de CACs em cada cidade brasileira
O Exército afirmou que não sabe quantas armas existem em cada cidade brasileira nas mãos de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (CACs). No conjunto do país, o arsenal de CACs já passa de um milhão de armas — quatro vezes o total de 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) flexibilizou, por decreto, o acesso a armas de fogo por civis.
A afirmação foi feita à CGU (Controladoria-Geral da União), durante análise do órgão sobre um pedido pela Lei de Acesso à Informação feito pelo UOL e negado pelo Exército. A CGU aceitou a justificativa do Exército e, dessa forma, os dados não serão disponibilizados.
Segundo o Exército, para saber o número de armas de CACs por cidade seria necessário o trabalho de 12 militares durante 180 dias úteis. Isso acarretaria "considerável prejuízo no cumprimento de outras atividades, como regulamentação, fiscalização e autorização referentes ao trabalho com Produtos Controlados pelo Exército", afirmou.
É uma contradição, já que, segundo especialistas, a análise de dados é uma das principais ferramentas de fiscalização. Permite detectar, por exemplo, uma alta atípica no número de armas em uma determinada cidade e, assim, determinar investigações.
"Isso mostra a baixíssima capacidade do Exército de fazer o controle das armas de forma eficiente", diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. "Ter dados por município é muito importante para planejar ações de fiscalização mais efetivas, a partir de inteligência."
"Com o aumento significativo de armas em circulação, não saber o número por município se torna ainda mais grave"
Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz
Procurado pelo UOL, o Exército não respondeu. Em manifestação anterior, em julho, disse que "é capaz de rastrear as armas cadastradas no Sigma [sistema onde são registradas as armas de CACs], atendendo às demandas institucionais, quer sejam investigações policiais ou determinações judiciais".
Justificativa sem embasamento técnico
Para solicitar o registro de CAC, o interessado é obrigado a informar unidade da federação, município e até a latitude e a longitude da sua residência.
Segundo o Exército, essas informações são registradas, mas não estão integradas na base de dados de armas. Dessa forma, a avaliação oficial é que seria necessário consultar os registros um a um para levantar o total de armas por município.
"O volume de tempo indicado [180 dias úteis] — que à primeira vista parece extenso — causa menor estranheza quando se observa que existem 957 mil registros ativos em acervos de CAC. No caso, foi posto a média de um minuto por entrada, o que parece razoável", escreveu a CGU, fazendo referência ao total de armas de junho.
No entanto, do ponto de vista técnico, o problema é passível de ser resolvido de forma automatizada.
É comum que bancos de dados sejam compostos de tabelas diferentes. Isso ajuda, inclusive, a otimizar o desempenho do sistema. Nesses casos, dados de diferentes tabelas são combinados apenas quando necessário, a partir de um campo em comum — no caso, o número de referência de cada CAC junto ao Exército.
"Isso se resolve com facilidade. Acredito que o Exército tenha técnicos competentes para lidar com isso. Se é tão capacitado para opinar sobre as urnas eletrônicas, como não tem capacidade de fazer gestão de um banco de dados?"
Ricardo Ceneviva, professor de ciência política da Uerj
"O problema não é técnico, mas político: a ausência de uma legislação clara que obrigue os órgãos de segurança pública a prestar contas sobre essas informações", diz Ricardo Ceneviva, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) especialista em uso de dados para construção de políticas públicas.
Apagão de dados de armas
Em abril, o Exército já havia admitido para o Instituto Sou da Paz não saber especificar quais são as armas em mãos de CACs. A informação foi revelada pela Folha de S. Paulo.
O motivo, alegou o Exército, eram múltiplas grafias usadas para um mesmo tipo de arma: "Existem aproximadamente 1,5 milhão de armas registradas no Sigma [incluindo CACs e forças de segurança] e, para editar e corrigir esses dados, com finalidade de padronizar a informação, é necessário acessar o registro de cada uma dessas armas".
Mas, novamente, há técnicas de gestão de bancos de dados para resolver esse tipo de problema de forma automática.
Além do Exército, o UOL solicitou o número de armas por município para a Polícia Federal, responsável por conceder posse (direito de manter arma no imóvel, seja ele residência, propriedade rural, comércio ou indústria) e porte para civis. O número também cresceu no governo Bolsonaro: 186 mil novas armas para posse e porte em 2021, o dobro de 2019.
Ao contrário do Exército, a PF disse que consegue fazer o levantamento do número de armas por município para fins de fiscalização. Mas negou a divulgação dos dados, alegando risco à segurança pública. De acordo com a PF, ao saber o número de armas em cidades pequenas, criminosos poderiam roubá-las. Mas sequer dados de municípios maiores foram disponibilizados
"Observa-se um crescimento da criminalidade associada ao domínio de cidades ou novo cangaço; a divulgação de informações que venham a possibilitar o dimensionamento da quantidade de armas em determinadas localidades (...) não seria aconselhável do ponto de vista da segurança da sociedade", afirmou a PF. O caso também foi levado à CGU, que concordou com a PF.
O resultado é um apagão de dados de armas por município. Sem essas informações, não é possível realizar estudos sobre o impacto do aumento da circulação de armas nas cidades — por exemplo, no número de roubos, de vítimas de arma de fogo, violência contra a mulher.
"O primeiro objetivo de ter um bom banco de dados é produzir informações de qualidade que permitam tomar decisões mais informadas, identificar e investigar anomalias", diz Ceneviva. De preferência, de forma automatizada.
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