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'Atira e depois pergunta': como pilotar moto na periferia é ser alvo da PM

O entregador Carlos Henrique Medeiros de Farias, 22, foi morto durante abordagem da PM - Arquivo pessoal
O entregador Carlos Henrique Medeiros de Farias, 22, foi morto durante abordagem da PM Imagem: Arquivo pessoal

Do UOL, em São Paulo

12/03/2023 04h00

O entregador Carlos Henrique Medeiros de Farias, 22, saiu para trabalhar no dia 15 de fevereiro e não voltou para casa. Ele foi morto com pelo menos três dos 22 tiros efetuados por policiais militares em uma abordagem no Jardim Rubio, zona oeste da cidade de São Paulo. O motivo da abordagem, segundo os PMs, teria sido o fato de Carlos não ter parado após a ordem deles.

Nos últimos meses, as mortes a tiro de mais dois jovens que estavam em motocicletas, na capital e na Grande São Paulo, também ganharam repercussão:

  • Motoboy negro foi morto pela PM com tiros no peito. Em janeiro de 2023, João Richard de Oliveira Gama Lopes, 25, morreu durante uma abordagem da PM quando andava de moto na Estrada do M'Boi Mirim, na região do Jardim Ângela, zona sul da capital. Os PMs alegaram que ele não parou ao comando e teria sacado uma arma, mas testemunhas afirmam que Richard estava rendido.
  • Menino negro de 11 anos andava na garupa e foi assassinado na noite de Natal. Luiz Miguel Matias Caje dos Santos morreu com um tiro na nuca, em Itaquaquecetuba, região metropolitana de São Paulo. Segundo a família, quem atirou foi o cabo da Polícia Militar Oziro Nonato de Oliveira, 48. Na delegacia, o PM negou.

12 casos de violência policial são monitorados pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio. Articulada por diversos movimentos sociais e moradores das periferias de São Paulo, a rede acompanha esses três casos e outros nove em que as motos foram um fator a mais para a violência policial.

A doutora em psicologia Marisa Feffermann, uma das articuladoras da Rede, explica que os casos são motivados pelo "racismo e pela criminalização da juventude" que "impedem que esses jovens busquem formas de sobrevivência, já que todas as portas estão fechadas".

Andar de moto na periferia é motivo a mais para virar vítima, diz pesquisador. Para Pablo Nunes, coordenador da Rede de Observatórios da Segurança, quando um jovem negro ou periférico está com uma moto na periferia, aumenta o risco de ele ser "vitimado pela polícia e de sofrer violência pelo Estado".

É fato muito conhecido de que a ação da polícia em territórios de periferia é muito mais violenta, é marcada muito mais por um 'atira primeiro e pergunta depois' e é marcada pela certeza dessa impunidade."
Pablo Nunes, pesquisador

Nunes destaca ainda que a moto é mais frequente em favelas e periferias do que em outras áreas da cidade. "Seja por ser um veículo mais barato para se comprar ou por ser um veículo que dá mais mobilidade, já que esses territórios são marcados por vielas e espaços com difíceis acessos", explica.

A moto é mais um filtro que informa a classe e a raça dos condutores. Não importa tanto a moto, importa o que ela representa, importa quem é que é mais provável de ter e utilizar a moto como meio de locomoção pela cidade."
Pablo Nunes, pesquisador

Ouvidor diz estar preocupado com casos

Em entrevista ao UOL Notícias, Cláudio Aparecido da Silva, ouvidor das polícias de São Paulo, afirmou que, "coincidentemente, nos três casos, as vítimas estavam em motos, mas que os casos são totalmente distintos".

Apesar disso, ele destacou que a Ouvidoria está "preocupada e atenta" para "o número de jovens que estão sendo abordados pilotando motos ou que estão sofrendo algum tipo de abordagem um pouco mais violenta por parte da polícia".

Vamos tomar medidas nos próximos dias, mas a partir de reflexões com informações técnicas para contribuímos efetivamente com as políticas que podem ser desenvolvidas para garantir segurança e dignidade para os trabalhadores motorizados a partir de uma motocicleta."
Cláudio Aparecido da Silva, ouvidor das polícias

22 disparos em Carlos: versões divergem

A morte de Carlos Henrique tem contradições nas versões. Segundo os PMs na delegacia, eles estavam em patrulhamento no Jardim Rubio, quando viram a moto do jovem. Teriam dado ordem de parada e não foram atendidos. Eles também falaram que o jovem caiu da moto e teria sacado um revólver calibre 38.

Testemunhas afirmam que Carlos passou muito rápido na moto e derrapou no chão. Os PMs teriam mandado uma das testemunhas do local "calar a boca e entrar para dentro" de casa, segundo relatos de familiares da vítima.

Carlos levantou as mãos para se render, mas os policiais atiraram nele."
Testemunha

Os PMs afirmaram na delegacia que efetuaram 22 disparos: 16 tiros saíram do fuzil calibre 556 do sargento Willian Roberto Pereira, e 6 da pistola glock calibre 40 do soldado Paulo Júnior Barbosa da Costa.

O corpo de Carlos tinha tiros na mão, no ombro e na axila direita. As armas dos policiais foram apreendidas. Também foram recolhidos 11 estojos de calibre 556 e 6 estojos de calibre 40.

A SSP informou que a Polícia Militar instaurou um inquérito, com o acompanhamento da Corregedoria, para apurar a morte do entregador.

"Os policiais envolvidos na ocorrência passarão pelo Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar e estão afastados do trabalho operacional nas ruas".

Policiais com câmeras corporais, mas sem imagens do caso. O delegado Glauco de Carvalho Quadros, do DHPP, onde o caso é investigado, afirmou que os PMs usavam câmeras corporais, mas as imagens não foram apresentadas.

Pai de um menino de 4 anos, Carlos morava com os pais e os três irmãos mais novos no Jardim João 23. De acordo com a irmã dele, que pediu para não ser identificada, o jovem já trabalhou com carteira assinada e viu nas entregas uma chance de renda.

"Ele foi demitido na pandemia. Aí começou a fazer as entregas", disse a familiar.

No dia do assassinato, a família não foi autorizada a se aproximar do corpo de Carlos no local. A liberação aconteceu na manhã seguinte, às 10h, conseguiram ver o cadáver, já no IML (Instituto Médico-Legal).

Carlos Henrique Mapa  -  -

"No reconhecimento, eu olhei um segundo porque me desesperei. Meu pai passou mal com falta de ar. Confirmei que era o meu irmão. Levantamos a manta e vimos um tiro perto do peito do lado esquerdo, entre a axila e o peito", contou.

No último domingo de fevereiro, a família realizou uma passeata em homenagem a Carlos —e para pedir justiça pela sua morte.