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'Chamar de demônio é ranço cristão’: no que diferem Belzebu, Baphomet e Exu

Thiago Varella

Colaboração para o UOL

28/03/2023 04h00

A estátua de Belzebu exibida em uma casa de Alvorada (RS) trouxe dúvidas e visibilidade a figuras religiosas que muitas vezes são encaradas com medo ou como representações "demoníacas". A imagem exposta pela mãe de santo Mãe Michelly da Cigana tem quase 2 metros de altura, corpo de homem, cabeça de bode, chifres, asas, pentagramas e uma cobra na barriga.

Para além de Belzebu, a imagem também já foi chamada de Baphomet, de Exu-Maioral ou, erroneamente em algumas publicações, de Saravá Exu-Maioral. Mas há diferenças entre eles, apesar de imagens que as representam poderem ser semelhantes.

O Belzebu de Alvorada

Mãe Michelly da Cigana é sacerdotisa da quimbanda, administra um centro de religiões de matriz africana (incluindo a umbanda), e explicou que atribuir a estátua a Baphomet não é errado, mas, que no caso dela, a representação é de Belzebu.

O meu Belzebu é uma divindade da alta magia, não é um exu. Ele não representa, para mim, o demônio. Ele pode ser cultuado na quimbanda, mas não na umbanda. Ele está acima disso. Mãe Michelly da Cigana

Quem é Belzebu?

Dizer quem é uma entidade religiosa é sempre complicado. Existem diversas tradições religiosas, e um nome pode significar algo para uma e outra coisa completamente diferente para outra.

Dentro da tradição quimbandista seguida por Mãe Michelly e por alguns outros terreiros espalhados pelo Brasil, Belzebu é o "maioral". Logo, ele está acima de todos os exus e pombagiras.

Além disso, Belzebu, dentro dessa tradição, não é um demônio. Não existe essa figura que personifica o mal nas religiões de matriz africana. Portanto, dizer que a estátua na casa de Mãe Michelly é o diabo é errado, como explica o pesquisador Rafael Heneine, mestre em Ciências da Religião pela UFPB e autor de um livro sobre Exu Maioral.

Chamar de demônio é um ranço cristão. É usar uma nomenclatura cristã. A gente cai no erro de chamar algo que não conhecemos de demônio de uma cultura que não tem demônio.

Originalmente, Belzebu era cultuado pelos cananeus como um deus. O nome vem da mistura de outras duas divindades: Baal e Zebub, rivais que um dia lutaram e se amalgamaram em uma única criatura chamada de Baalzebub ou Belzebu.

Segundo Heneine, é típico da quimbanda trazer elementos de diferentes tradições. A religião surgiu no Brasil, no começo século 20, justamente quando existia um grande tráfego de influências europeias.

"A quimbanda surge como um encontro das tradições e acaba fazendo o que chamamos de trânsito religioso, com seus hibridismos culturais", afirmou Heneine.

Vale também dizer que existem quimbandistas que não consideram Belzebu como uma divindade, muito menos como o maioral. E isso reforça como não há uma única maneira de se praticar esta religião.

Quem é Baphomet?

Baphomet vem de uma tradição religiosa europeia chamada de Ocultismo. Ele é um símbolo de luz, que traz controle sobre os desejos carnais, os vícios e o ego humano.

Essa figura com cabeça de bode e corpo humano, geralmente representada com um pentagrama, foi popularizada por Éliphas Lévi, famoso ocultista francês do século 19. Ele desenhou Baphomet dessa maneira para seu livro "Dogma e Ritual de Alta Magia".

Imagem de Baphomet - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Baphomet também não é o demônio. Esse personagem passou a sofrer perseguição no século 19, por parte de um jornalista que acusava a maçonaria de o cultuar. Muito antes disso, a Igreja Católica já havia acusado os templários de idolatrarem a "criatura".

"Existe uma concepção da imagem do diabo medieval na cabeça das pessoas. E Baphomet tem essa característica do feio que causa medo", explica Heneine.

Em algumas tradições quimbandistas, Belzebu é representado pela mesma figura de Baphomet.

Quem é Exu Maioral

Mãe Michelly já deixou claro que a estátua instalada em sua casa não representa Exu Maioral. Mas, como a confusão foi feita, vale explicar quem é essa figura fundamental da quimbanda.

Aqui, não estamos falando de Exu (ou Èṣù) como orixá, como vemos no candomblé. Na quimbanda, cada exu tem um nome e uma função. No caso de Exu Maioral, trata-se do maioral entre os exus, na maioria dos casos. É um ser tão importante e secreto que poucos praticantes falam sobre ele.

Sua imagem, muitas vezes, se assemelha à de Baphomet, o que pode ser que tenha trazido a confusão no caso de Mãe Michelly.

Preconceito é crime

Seja no caso de Baphomet, de Belzebu ou de Exu Maioral, confundi-los com o demônio é uma visão cristã e equivocada. Além disso, mesmo dentro da quimbanda, há diferentes vertentes e linhas, cada uma com uma explicação distinta de seus seres.

Demonizar ou inferiorizar uma religião não apenas é errado como é crime. A Constituição brasileira garante a liberdade de culto, seja a Jesus, a Alá, aos orixás, a Belzebu, a Baphomet ou ao Exu Maioral.