Não é só gatonet: milícia arrecada milhões com 'taxas do medo' no Rio
As milícias que ocupam territórios no Rio de Janeiro podem ter sofrido um baque recente em suas finanças após a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) bloquear aparelhos de TV Box não homologados, afetando o chamado "gatonet" — um dos ramos de sustentação dos grupos nas comunidades da capital fluminense.
A prática do gatonet consiste na captação e venda ilegal do sinal da TV fechada. Para o professor Danilo Hirata, da UFF (Universidade Federal Fluminense), a tendência é de que as milícias não desistam desse negócio, mas se ajustem.
"Com o gatonet bloqueado, a previsão é de que esse mercado se adapte. Pode ser que haja até uma migração do informal para o legal agora, com criação de empresas mesmo. A diversificação das milícias nos negócios permite uma flexibilidade para atuar em vários ramos", explicou o professor, que coordena o Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) na UFF.
No Rio, as milícias dominam 41 bairros, o que corresponde a 58% do território da cidade e 2,1 milhões de habitantes (33,9%), segundo estudo do Geni-UFF.
As milícias produziram as suas próprias cidades. Isso significa que atuam no mercado mobiliário de ocupação, loteamento e venda, e fornecimento de serviços de infraestrutura urbana. Isso permitiu uma alavancagem econômica muito mais rentável que o comércio varejista de tráfico de drogas. Danilo Hirata (Geni-UFF)
Quais as "empresas" milionárias das milícias?
O relatório final da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) revelou que as milícias lucravam milhões de reais nos seguintes ramos:
- Gatonet
- Transporte ilegal de passageiros
- Venda ilegal de gás de cozinha
- Taxa de segurança de moradores
- Mercado imobiliário
Segundo Danilo Hirata, mais de dez anos depois, as milícias se sustentam da mesma forma. Isso é corroborado por investigações recentes da Polícia Civil e do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro).
Mais recentemente, investigações revelaram que grupos de milícias também já se aventuram em mineração, venda ilegal de bebidas e cigarros e agiotagem.
Veja como cada ramo de negócio tradicionalmente operado pela milícia funciona.
Gatonet
O que é: trata-se da operação de venda ilegal de sinal da programação de TV fechada a cabo ou via satélite. Como as milícias detêm o controle dos territórios onde atuam, as operadoras são barradas para oferecer o serviço nas comunidades.
Como funciona: a milícia adquire legalmente receptores de operadoras com mais de uma assinatura ou TVs Boxs e, assim, distribui o sinal de TV dos aparelhos para a comunidade através de cabos — mediante a pagamento.
Quanto é cobrado: R$ 50 a R$ 60 para instalação e de R$ 20 a R$ 40 mensal pelo sinal. O lucro pode chegar a R$ 1 milhão por ano em raio de 4 mil domicílios.
Segurança privada
O que é: as milícias cobram taxas de moradores e comerciantes em troca de uma suposta segurança privada.
Como funciona: os milicianos cobram uma taxa semanal ou mensal — dependendo da comunidade — de porta em porta de residências e estabelecimentos comerciais mediante ameaças e intimidações com a promessa de uma suposta vigilância da região.
Quanto é cobrado: a CPI das Milícias apurou que a cobrança variava entre R$ 15 a R$ 20 por mês. Uma década depois, o valor não mudou, continuando de R$ 10 a R$ 20 para pequenos empreendimentos, mas podendo chegar a R$ 100 para camelôs e restaurantes.
Transporte alternativo
O que é: trata-se da exploração de rotas não atendidas ou ofertadas de maneira insatisfatória pelo transporte público, ou alternativo, através de cooperativas de vans, ou carros particulares na periferia.
Como funciona: as milícias inibem a circulação de transportes regulados, como ônibus, táxis e carros de aplicativos nas comunidades dominadas por elas para aumentar a demanda do transporte alternativo. Em troca, os motoristas devem pagar taxas pesadas aos milicianos.
Quanto é cobrado: uma investigação de 2018 do MP-RJ revelou que os milicianos cobravam de R$ 350 a R$ 800 dos motoristas ao mês, podendo ter gerado um lucro de R$ 27 milhões mensais com a exploração ilegal do serviço somente nos bairros Campo Grande e Santa Cruz, na zona oeste do Rio.
Venda de gás
O que é: com a falta de gás via encanação nas comunidades, as milícias viram a venda de botijão como alternativa para aumentar seus faturamentos ilegais.
Como funciona: empresas de revenda de gás são criadas pelas milícias e abastecidas com botijões de distribuidoras legalizadas ou de roubos de cargas. Para manter o monopólio na comunidade, os milicianos exigem a compra exclusiva deles.
Quanto é cobrado: uma investigação de janeiro de 2022 da Polícia Civil informou que era cobrada uma taxa de no mínimo 20% acima do valor médio do mercado.
Mercado imobiliário
O que é: é caracterizada pela ocupação de áreas em expansão imobiliária, principalmente na zona oeste do Rio; e construção de imóveis sem fiscalização da prefeitura e posterior venda no mercado imobiliário paralelo. Além disso, esse ramo ocupa condomínios construídos por terceiros.
Como funciona: esse segmento dos negócios avançou nas periferias a partir de 2010, quando as milícias viram a expansão na zona oeste como fonte de receita para construção de prédios, geralmente do tamanho de kitnets, destinados a famílias mais carentes. Como as obras são irregulares, a exemplo do prédio que desabou e matou 24 pessoas em Muzema, a transação imobiliária acontece em um mercado à margem da legalidade, sem qualquer garantia aos compradores. Em meio a isso, as milícias também se aproveitam de prédios já construídos, sobretudo dos provenientes do Minha Casa Minha Vida, assumindo o controle dos condomínios, cobrando taxas dos residentes para o fornecimento de água, luz e internet. Em alguns casos, moradores chegam a ser expulsos, conforme mostra relatório da UFF.
Quanto é cobrado: Um imóvel do tamanho de uma kitnet é vendido de R$ 38 mil a R$ 56 mil. Há, ainda, casos em que as milícias cobram de 10% a 50% do valor da venda quando um morador negocia um imóvel.
É difícil saber qual é o negócio mais lucrativo da milícia porque não se tem acesso a valores, apenas ao que é divulgado em investigações. Mas acredito que o mercado imobiliário e os serviços que usam da infraestrutura urbana, são considerados os mais importantes para eles. Danilo Hirata (Geni-UFF)
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