Milícia explora 'Uber clandestino', kit churrasco, camelôs e caldo de cana
Com o aumento do poderio das quadrilhas de milicianos no Rio de Janeiro, cada vez mais atividades corriqueiras entram na mira dos criminosos para exploração econômica com base em extorsão.
Levantamento do UOL com base em relatos de moradores, informações do Disque Denúncia e investigações do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) mostra que milícias monopolizam a venda de insumos para churrasco, cobram valores sobre entregas de encomendas e taxas de camelôs e barracas de lanche.
Os grupos paramilitares —compostos por policiais e ex-policiais, entre outros— também cobram para permitir que moradores façam obras em suas casas e até mesmo estacionem carros nas ruas.
Parte das denúncias foram feitas por três vítimas que relataram como sobreviveram à violência de milicianos no Rio no vídeo Vizinhos do Mal —produção do UOL Notícias e MOV (assista acima). O UOL publica hoje a terceira reportagem da série sobre milícias. Veja o que já foi publicado:
Cooperativa de transporte com propina a policiais. A exploração também chega ao transporte. Na Baixada Fluminense, milícias inibem a circulação de ônibus, táxis e carros de aplicativos de transporte formais, como Uber e 99, para aumentar a demanda por cooperativas ilegais de carros particulares, que atuam como uma espécie de Uber clandestino.
Os motoristas que trabalham nas cooperativas são obrigados a pagar diárias pesadas a milicianos. Pedro (nome fictício), um dos entrevistados no vídeo Vizinhos do Mal, foi ameaçado de morte após deixar a cooperativa.
Todos que entrassem teriam que pagar uma taxa por dia. Se a pessoa não pagasse, o carro era apreendido ou [a pessoa] era ameaçada de morte. Eles [os milicianos] ameaçavam os motoristas de ônibus, de táxi, para que só eles tivessem acesso aos passageiros da localidade."
Pedro (nome fictício), vítima de milícia
Ele revelou que o esquema de transporte irregular da milícia era viabilizado por policiais militares do batalhão local, que recebiam propina para permitir que os veículos rodassem. A intermediação era feita por um ex-PM chefe da milícia local de dentro da prisão.
"Os carros eram parados nas blitze. Aí tinham alguns nomes de pessoas de dentro do batalhão que automaticamente liberavam os carros."
Prática semelhante foi comprovada pela polícia na comunidade do Rio das Pedras, na zona oeste da capital, considerada o berço dos grupos paramilitares. Lá, a sofisticação dos criminosos era tamanha que o serviço de transporte clandestino contava até mesmo com um aplicativo de celular.
Em diversos pontos da área central de Campo Grande —maior bairro do Rio de Janeiro, localizado na zona oeste— motoristas de aplicativo são impedidos de buscar clientes em supermercados e outros comércios por imposição da milícia local, que controla o transporte alternativo.
Kit churrasco e cestas básicas. Até mesmo situações corriqueiras, como fazer um churrasco em casa, são encaradas pelos grupos criminosos como uma oportunidade de negócio viabilizada pela violência.
Flávia (nome fictício) —ameaçada por testemunhar crimes enquanto trabalhava na secretaria de um conjunto habitacional dominado por milicianos— contou que os criminosos monopolizavam a venda de cestas básicas e obrigavam os moradores a comprarem o chamado "kit churrasco" (com carnes e carvão) vendido por eles.
"Naquele condomínio, essa milícia implantou a venda de cesta básica. Já havia antes pessoas que vendiam [as cestas], mas eles [os milicianos] proibiram", relatou.
Se você estivesse na sua casa fazendo um churrasco, [os milicianos] iam até você [e perguntavam]: 'Onde você comprou isso'. [A pessoa respondia:] 'Ah, comprei no mercado'. Eles te traziam um kit churrasco e te obrigavam a ficar [com o produto]. Os condôminos eram obrigados a comprar tudo da mão deles."
Flávia (nome fictício), vítima de milícia
O comércio de diversos itens, como galões de água mineral e cigarros contrabandeados, também entrou no radar das milícias.
Investigação do MP-RJ sobre a quadrilha comandada pelo miliciano Orlando Curicica, que controla comunidades em Jacarepaguá (zona oeste), mostrou que, antes de invadirem um novo território, os criminosos faziam um inventário de todas as atividades econômicas que poderiam ser exploradas no local.
Taxas para entregas, camelôs e barracas de lanche. Informações apuradas pelo UOL mostram que até mesmo ambulantes sofrem extorsões por milicianos em diversos pontos do Rio.
Nas investigações que resultaram na Operação Dinastia, deflagrada na semana passada pelo MP-RJ e Polícia Federal, conversas interceptadas entre milicianos revelaram que a extorsão chegava até mesmo a barraquinhas de lanche e caldo de cana.
Em uma prestação de contas sobre a extorsão de comerciantes, Paulo Maique da Silva Vitório, conhecido como Maike e alvo da operação, diz a Latrell —o número dois do Bonde do Zinho (ele está preso)— que cobrou R$ 50 de uma barraca de pastel e caldo de cana; R$ 10 de um vendedor de pipas; e R$ 20 de uma barraca de açaí. As defesas de Maike e Latrell não foram localizadas pela reportagem.
A mesma milícia cobra R$ 100 mensais de camelôs que atuam no centro de Campo Grande e Santa Cruz, na zona oeste.
Relatos feitos ao Disque Denúncia mostram ainda que na comunidade da Muzema, vizinha do Rio das Pedras, há cobrança de taxas para a entrega de correspondências e encomendas.
Os moradores também são obrigados a pagar R$ 160 mensais para estacionar os próprios carros nas ruas da comunidade, além de R$ 250 semanais, caso façam algum tipo de obra em seus imóveis.
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