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Ele passou quase metade da vida no crack: 'Um dia cansei de comer do lixo'

Aos 49 anos, Regis passou 23 fumando crack, ou seja, quase metade da sua vida - Arquivo Pessoal
Aos 49 anos, Regis passou 23 fumando crack, ou seja, quase metade da sua vida Imagem: Arquivo Pessoal

Do UOL, em São Paulo

11/05/2023 04h00

Foi com um trago de maconha que as drogas entraram na vida de Regis Adriano, aos 18 anos. Pouco tempo depois, o 'barato' do baseado foi perdendo a graça e dando espaço para outras drogas. É a partir daí que Regis começa a sua viagem até o fundo do poço e decide trocar a casa simples em Caieiras, em São Paulo, pelas ruas da cracolândia, na região central da capital.

Foram cinco anos convivendo com o frio, a fome e a violência. Companheiros mesmo, só o crack, a cocaína e outras tantas drogas. Hoje, aos 49 anos, Regis faz as contas: passou 23 fumando crack, ou seja, quase metade da sua vida. Hoje, ele está recuperado, casado e usa sua experiência para ajudar usuários de drogas.

"O uso de drogas tem uma coisa que é a progressão, certo? Depois de um tempo, elas deixam de fazer efeito e você busca outras drogas, outros efeitos e outras experiências. No meu caso, eu já sabia qual era o efeito da maconha e quis saber qual era o efeito do crack, o porquê de os caras ficarem agitados e tal."

Ao longo desse processo, ele buscou ajuda para se recuperar. Foram sete tentativas, sete internações. Nenhuma deu certo.

As internações são focadas no proibicionismo, e isso não deu certo comigo. Sou um cara sociável, tentei mudar meu estilo de vida. Eu era irmão da igreja, de terno e gravata e tal, mas, de certa forma, não era mais o Regis. Busquei por um milagre e não rolou comigo. Cansei das internações e acabei nas ruas."

A decisão veio depois de ele mesmo não se reconhecer mais: por causa do vício, já não conseguia ir trabalhar e passou a cometer furtos dentro de casa.

Onde eu encostava, as pessoas falavam: 'Vixe, esse cara aí é um pilantra'. Só que, no fundo de mim, aquilo me incomodava. Porque o uso de drogas é uma doença que faz com que você transforme todas as prioridades da sua vida nas prioridades e necessidades do uso somente. Então, não me importava com o que eu fazia. Não na hora, né? Depois, eu refletia... como que eu pude fazer tudo isso? Tinha vergonha de tudo e de todos. Só queria fugir, só que não tem como fugir de si mesmo, né?"



'Cospem em você e chamam de zumbi'

No período em que morou nas ruas, Regis, que é metalúrgico por formação, foi perdendo tudo: o trabalho e o contato com a mãe, filhos e amigos. Para sobreviver, percorria as ruas do bairro Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, conhecido pelo comércio popular e pelas lojinhas de eletrônicos, atrás de caixas de papel recicláveis. "Pegava de tudo e vendia. Carregava papelão dia e noite. Cheguei a passar 10 dias acordado de tanto que usava crack."

Quando dormia, era nas calçadas e debaixo de viadutos.

Na rua é o seguinte: as pessoas têm medo de você e te desprezam. Têm preconceito, porque acham que você vai roubá-las. Te menosprezam, porque não te consideram um ser humano. Então, elas te chutam, porque acham que você é um cachorro. Elas cospem em você. Infelizmente, acham que ali não tem mais seres humanos. Chamam de zumbi."

Para manter o vício e ter um "status" na rua, Regis entrou para o crime. Tempos depois, foi preso por tráfico de drogas. Ficou 2 anos, 9 meses e 22 dias na cadeia. Quando saiu da penitenciária, tentou retomar o rumo da própria vida e abriu um negócio. Mas, de novo, perdeu tudo para o vício.

"Quando saí da prisão, abri uma microempresa. Só que eu estava fumando cada vez mais. Dentro da cadeia também tinha drogas. Saí bastante viciado de lá. Dizem que tem gente que fuma até os fios da parede, né? Foi isso que eu fiz. Vendi até os fios da minha empresa para comprar crack. Minha família contraía dívidas por causa do meu vício".

Bomba, tiros e uma pedra na mão

Regis voltou para as ruas. Foi nessa época, em maio de 2017, que a prefeitura paulistana e o governo do estado deflagraram uma megaoperação policial na região da cracolândia para combater o tráfico de drogas. Ele lembra, "como se fosse hoje", do dia da ação que visava o "fim da cracolândia".

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21.mai.2017 - Policiais fazem operação na região da cracolândia, no centro de São Paulo
Imagem: Paulo Whitaker/Reuters

Sabe como que eu estava? Totalmente alienado, com a minha mão fechada segurando minha pedra. Minha única preocupação era que ninguém esbarrasse na minha mão e derrubasse minha droga. Ao meu redor, tinha gente tomando tiro, gás lacrimogêneo, gritando. Eu não me importava se ia tomar tiro ou não. Quando os policiais vinham mais para cima, eu só ia mais um pouquinho para o canto pra sair do alvo, mas eu continuava o meu uso."

Foi depois dessa ação violenta que ele conheceu um projeto de redução de danos que atuava na região e, segundo conta, foi a mão estendida que precisava.

"Tinha um projeto chamado De Braços Abertos, que recebia quem vivia na rua. Ali, eles traziam a dignidade da gente de volta. Tinha banheiro, café de manhã. Nem todo mundo entrava ali para tomar café. Mas, nessa que você entrava, eram uma ou duas horas que você passava lá dentro. São duas horas que você deixou de usar sua droga. Duas horas que você lembrou que é gente, que tem família."

Skate e cura da alma

Nessas entradas, Regis começou a frequentar o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e fazer terapia. Foi isso que o ajudou a entender o motivo de usar drogas, explica.

"Não tinha autoestima. Passei a entender o que sentia e entendi que as drogas estavam me prejudicando. Tentava parar de usar, mas recaía por causa das dores da alma. A internação não trata a dor da alma, só do uso."

Emocionado, ele conta que a vida de um ex-usuário de drogas não é fácil, e que a batalha é diária.

Um dia, cansei de apanhar dos outros. Um dia, cansei de comer bagulho do lixo, tá ligado? Um dia, cansei de sofrer. Ninguém podia fazer nada por mim. As pessoas até me ajudavam, mas, se eu não me ajudasse, não resultava em nada."

E foi "se ajudando" que ele encontrou novas escolhas para lidar com a dor na alma: acompanhamento médico, terapia e skate.

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Com terapia e a ajuda do Skate, Regis encontrou forças para sair das ruas
Imagem: Arquivo Pessoal

Parar de usar não é tão difícil. Difícil é continuar vivendo sem usar. Por que quando algo despertar a sua dor, o que você vai fazer? Não era por causa disso que você usava droga? O seu cérebro vai pedir, tentar te enganar: 'Fuma uma que você melhora'".

E nessa jornada em busca de uma nova vida que voltou uma paixão antiga da adolescência. O skate ocupou um lugar que estava tomado pelo crack e deu mais forças para enfrentar a vida.

Já são mais de quatro anos longe das ruas e hoje ele virou uma voz para outros que ainda estão nas drogas. Nas redes sociais,conversa com usuários e familiares de viciados, usando sua experiência para ajudar quem precisa. Também reuniu suas histórias no livro 'Skate no caminho das pedras'.

Para mim foi importante escrever o livro, porque consegui terminar alguma coisa. Eu não conseguia finalizar as coisas na minha vida, só começava e desistia. Vou escrever outras histórias para mudar outras vidas. Cada vez que alguém me fala que não fuma mais porque eu ajudei, eu respondo que eles me ajudam."

Hoje, Regis está casado com Simone, que conheceu na internet, e feliz. Mesmo assim, a única certeza que diz ter é de que a luta sempre continua.