'Ninguém quer virar casaca': briga que pode mudar o mapa assombra cearenses

A disputa judicial envolvendo uma área que é duas vezes o tamanho da cidade de São Paulo preocupa cearenses que vivem em municípios cortados pela Serra de Ibiapaba. Há 12 anos, o estado do Piauí passou a reivindicar a área, de 3 mil quilômetros quadrados, que acredita ter sido invadida pelo Ceará em uma expedição no início do século 19.

O que diz a população

Moradores relatam apreensão se desfecho for favorável ao Piauí. O engenheiro mecânico João Paulo de Oliveira, 32, vive na cidade de Poranga (CE), que tem parte do território em disputa. Ele acredita que a mudança proposta pode causar alterações radicais para os moradores, na cultura, educação e até desenvolvimento e infraestrutura.

Os habitantes do Ceará estão apreensivos sobre o desfecho potencialmente favorável ao Piauí: 'Será que serei obrigado a me tornar piauiense?'; ou 'Terei de desocupar minhas terras?'; ou então 'E se eu não quiser adotar a identidade piauiense?'. Além disso, surge a incerteza sobre o local de votação, preocupações que assombram uma parte significativa da população afetada.
João Paulo, engenheiro

"Acho que não tem nenhum cearense que queira se tornar piauiense. O piauiense é um povo hospitaleiro, alegre e de muita coragem, assim como povo do Ceará, isso é fato. Falo porque conheço muitos e tenho parentes lá, mas acho que ninguém quer virar casaca e se tornar piauiense", afirma o engenheiro.

Litígio virou debate em sala de aula, diz professora. Maria José Gomes Bezerra Oliveira, 44, nasceu e trabalha na cidade de Poranga, onde leciona geografia. Ela soube do litígio em 2001. E, a partir de 2015, o assunto tornou-se foco de discussões em sala.

Considero a disputa territorial um verdadeiro ato de desrespeito com a população do Ceará, especificamente da minha cidade que perderá em torno de 66% de seu território. Para a população poranguense não vejo melhorias, principalmente na área em que atuo.

Mapa da área em litígio
Mapa da área em litígio Imagem: Arte UOL

Ela teme teme pelas distâncias e educação. "Deixar de ser cearense, passar a ser um cidadão piauiense, ficar em um estado com distâncias enormes dos centros urbanos é algo que tememos muito. Vemos a fragilidade de investimentos em saúde e educação no Piauí, por isso os estudantes daqui se questionam onde irão estudar, quem serão seus professores —todos são concursados do Ceará."

Professora defende considerar os laços afetivos que a população construiu ao longo da história. "Proponho um plebiscito de maneira democrática, permitindo que a população expresse sua opinião, considerando as consequências diretas na vida das pessoas."

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Mapa do Piauí em 1761, mostrando o litoral piauiense para além do rio Timonha
Mapa do Piauí em 1761, mostrando o litoral piauiense para além do rio Timonha Imagem: Reprodução/Wikipedia

Mapa do litígio intriga cearenses desde a infância. Prestes a concluir o curso de geografia pelo IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará), o professor Roméryo Timóteo de Souza, 32, de Crateús, se lembra de muitas vezes observar uma região destacada entre o Ceará e o Piauí que, estranhamente, não parecia não pertencer a nenhum dos estados.

Lembro-me de perguntar às pessoas ao meu redor sobre esse território específico, mas ninguém sabia responder. Somente a partir dos 16 anos tomei conhecimento de que essa área é uma zona de litígio entre os dois estados. De uns sete anos para cá, passei a ter maior interesse em pesquisar e estudar sobre esse tema.

Professor diz que 'qualidade de vida' é ponto de dúvida. "As comunidades localizadas na região do litígio, na sua esmagadora maioria, se identificam como cearenses, até porque são atendidos pelo Ceará, e não querem deixar de pertencer ao estado. Principalmente por acreditarem que suas vidas serão modificadas no quesito qualidade de vida", diz Roméryo.

PIB de R$ 6 bilhões

Viçosa do Ceará e, ao fundo, a Serra da Ibiapaba, que seria o marco da divisa entre Ceará e Piauí
Viçosa do Ceará e, ao fundo, a Serra da Ibiapaba, que seria o marco da divisa entre Ceará e Piauí Imagem: Governo do Ceará
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A região em disputa abriga uma população de 25 mil pessoas, de acordo com informações da Defensoria Pública do Estado do Ceará.

O território engloba 136 localidades sob administração do Ceará, que incluem 42 escolas, 12 unidades de saúde, 121 propriedades rurais certificadas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e 1.006 estabelecimentos agropecuários, além de um PIB aproximado de R$ 6 bilhões.

Briga se arrasta por mais de 300 anos, mas litígio entre os estados foi levado à Justiça apenas em 2011 pelo Piauí, que passou a reivindicar no STF a área de parte dos municípios de Poranga, Croatá, Tianguá, Guaraciaba do Norte, Ipueiras, Carnaubal, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Ipaporanga, Crateús, Viçosa do Ceará e Granja.

O argumento do Piauí

Os piauienses questionam os marcos da divisa com base no Decreto Imperial 3.012, de 22 de outubro de 1880, que alterou a linha divisória das então duas províncias. O decreto estabelece limites. Afirma que "serve de linha divisória das duas províncias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da [linha] do rio Puty [hoje chamado de Poti], no ponto do Boqueirão".

Diz o texto que o Piauí ficaria com "todas as vertentes ocidentais da serra", e o Ceará, com as orientais. O problema é que o Ceará tem terras ocidentais (a oeste) da serra.

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O questionamento é antigo. Ainda em 1920, o presidente Epitácio Pessoa chegou a mediar um acordo entre os dois estados para que "engenheiros de confiança" fizessem um levantamento geográfico na região. Mas a perícia nunca ocorreu.

O que diz o Ceará

A Procuradoria-Geral do Estado do Ceará, que está à frente da defesa do estado na ação de litígio, argumenta, com base na análise de documentos, que o decreto de 1880 delimitou apenas duas áreas (Amarração e Príncipe Imperial) que foram trocadas pelo Ceará e o Piauí, e não a divisa integral das duas províncias, "permanecendo, desse modo, a Serra da Ibiapaba em território cearense".

*Com informações de reportagem de Carlos Madeiro, publicada em novembro de 2023.

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