Acolhimento a criança em situação de rua deve incluir família

Programas para a população de rua no Brasil geralmente são pensados para adultos que não têm onde morar e vivem sozinhos — e acabam excluindo famílias e mães, que podem ser o ponto de partida para interromper o ciclo que mantém crianças nessa situação.

Especialistas ouvidos pelo UOL afirmam que garantir o direito à moradia é o ponto de partida para que a população em situação de rua consiga reestruturar sua vida e acesse outros direitos básicos. E isso é importante também para as crianças.

Mesmo sem endereço fixo ou teto, os pequenos e seus familiares buscam serviços de equipamentos públicos que contribuem com o desenvolvimento infantil, como as creches. Neste momento, outros obstáculos aparecem no cotidiano das crianças, afirma Katia Cilene Oliveira Giraldi, defensora pública do Estado de São Paulo.

A falta de estrutura daquela família para tomar banho, para a criança dormir ou trocar de roupa gera questionamento na escola ou de algum outro órgão público em relação à família. É difícil você explicar que, mesmo em situação de rua, aquela criança está sendo bem cuidada, dentro do possível.
Katia Cilene Oliveira Giraldi, defensora pública

Katia trabalha com foco em mulheres grávidas e puérperas no centro da capital. Para ela, impedir que crianças comecem suas vidas nas ruas, acolhendo mulheres grávidas, é um caminho para interromper o ciclo de famílias com crianças que vivem em situação de rua. "Você passa a não correr mais o risco de outras crianças ficarem nessa situação."

Coordenador da Rede Criança não É de Rua, Manoel Torquato também defende a prioridade para mulheres e crianças em programas para população de rua. "Quando a família tem acesso ao direito à moradia, uma série de violações se encerram ali, sobretudo para crianças, adolescentes e mulheres. A proteção que uma moradia oferece é a dimensão principal para que outros serviços funcionem bem".

Assim como organizações internacionais, ele acredita que a solução inclui programas no modelo moradia-primeira — são residências do Estado fornecidas para pessoas e famílias em situação de rua para que elas possam restabelecer suas vidas, próximas dos seus vínculos sociais na cidade onde vivem, garantindo que outros serviços públicos além da assistência social cheguem a essas pessoas.

'Cuidar da família é cuidar da criança'

Na experiência de diferentes órgãos consultados pela reportagem, quando crianças entre 0 e 6 anos estão em situação de rua, elas não estão sozinhas. É comum que exista um familiar — e parte do processo de acolhimento de crianças em situação de rua é atender as necessidades dos seus responsáveis também.

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Os pais que exercem uma parentalidade positiva acabam minimizando os impactos num ambiente adverso. Mas os pais que também cresceram num ambiente adverso e que vivem em uma situação de estresse, de depressão, de problema de saúde mental, em meio à provação, eles não conseguem fazer essa proteção e essa estimulação da criança.
Alexandra Brentani, pediatra e professora da USP

Na primeira infância, essas condições ambientais são ainda mais significativas para o desenvolvimento humano. É o momento em que o cérebro forma sua arquitetura — a partir das interações positivas e negativas das crianças com o ambiente. A interação com os pais também faz parte desse processo.

"A criança precisa de um ambiente acolhedor, sem privação. Seja de nutriente, seja de estímulo para que ela consiga desenvolver o seu pleno potencial. A criança que está exposta à insegurança alimentar, à violência, ela não tem esse ambiente positivo", afirma Alexandra.

Faltam dados sobre crianças em situação de rua no Brasil

Não há dados precisos sobre as crianças que vivem nas ruas no Brasil — para os especialistas que conversaram com o UOL, é evidente que é necessário aperfeiçoar os dados sobre essa população.

Relatório do Ministério dos Direitos Humanos indica que há 3.845 meninas e meninos com idade entre 0 e 9 anos em situação de rua. A pasta usou informações de cadastros públicos até julho de 2023.

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Outro levantamento, da Prefeitura de São Paulo, no entanto, somou números semelhantes — mas relativos apenas à capital paulista. Segundo o Censo da cidade de São Paulo de 2022, 3.700 crianças e adolescentes vivem em situação de rua na capital. 1.151 têm entre 0 e 6 anos; desse grupo, 781 são negras.

Em dezembro de 2023, o governo federal lançou o programa Plano Ruas Visíveis, que inclui uma série de investimentos de R$ 1 bilhão para 11 ministérios com o objetivo de efetivar a política nacional para a população em situação de rua. Do total, R$ 3,7 milhões vão para habitação.

Foi uma resposta à determinação do Supremo Tribunal Federal que exigia providências para o atendimento à população de rua e ações para implementar a política nacional para a população de rua, que foi interrompida durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Manoel Torquato, da organização Criança não é de Rua, considera o programa um avanço, pelo menos do ponto de vista do diálogo, mas critica a falta de construção coletiva do projeto com a sociedade civil e a ausência de meios para monitorar a aplicação dos recursos.

Coordenadora do Colaboratório Nacional da PopRua da Fundação Oswaldo Cruz em São Paulo, Laura Salatino também reconhece o avanço do plano e a atuação em diferentes áreas dos serviços públicos, mas vê que a moradia, uma reivindicação constante dos movimentos sociais que atuam em prol de crianças em situação de rua, não é uma prioridade.

"Se você olhar o plano, grande parte do orçamento é destinado para políticas socioassistenciais, especialmente centros de acolhida. Isso tem sido um problema, porque o Estado investe nessa política desde os anos 2000, e não vemos essas políticas propondo saídas efetivas".

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As pessoas ficam circulando entre os diversos centros de acolhida e não conseguem sair. Por outro lado, temos algumas pequenas iniciativas que têm sido muito bem-sucedidas na moradia para pessoas em situação de rua. Elas permitem que as famílias continuem juntas, que as mães consigam ficar com seus filhos, é muito difícil para a mãe criar uma criança em um centro de acolhida.
Laura Salatino, coordenadora do polo de São Paulo do Colaboratório Nacional da PopRua da Fiocruz

A reportagem procurou o Ministério dos Direitos Humanos, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto. O espaço continua aberto.

*Reportagem feita com o apoio do Fellowship 2023 sobre primeira infância do Dart Center for Journalism & Trauma da Columbia Journalism School.

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