Justiça do RS teve 5.000 ações contra poder público por enchentes em 8 anos

Cerca de 5.000 pessoas entraram com processos contra o poder público por prejuízos causados pelas enchentes nos últimos oito anos, no Rio Grande do Sul, segundo levantamento feito pelo UOL com base em dados do Tribunal de Justiça do estado.

O que aconteceu

As ações responsabilizam governo estadual e prefeituras de oito cidades da região metropolitana. Os processos contra gestões municipais estão ligados à falta de investimentos em saneamento, em locais onde há aumento populacional — como Porto Alegre e Gravataí. Já o governo estadual é processado por inundações de rios e arroios, que ficam sob a sua gestão, segundo a Constituição Federal.

Enchentes nos últimos anos, causadas por cheias no Arroio Feijó, em Viamão e Alvorada, motivaram processos contra o Rio Grande do Sul. O artigo 26 da Constituição Federal diz que o estado tem o dever de cuidar e zelar pelas águas intermunicipais. Também há ações na região metropolitana contra o governo estadual em Eldorado do Sul, Novo Hamburgo, Charqueadas e Esteio.

Ações de moradores vizinhos da Arena do Grêmio também cobram a Prefeitura de Porto Alegre por prejuízos após chuvas. Os alagamentos estão ligados à explosão demográfica desordenada após a inauguração do estádio, em dezembro de 2012, sem que fossem feitos investimentos em saneamento, sob responsabilidade da gestão municipal. Segundo o artigo 30 da Constituição Federal, é responsabilidade das prefeituras "promover o ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano".

A abertura de processos contra o poder público em casos de prejuízos por enchentes se intensificaram desde 2016. O volume de ações ganhou peso após a aproximação de advogados especialistas e lideranças comunitárias das áreas mais atingidas do Rio Grande do Sul. Das cerca de 5.000 ações abertas nos último oito anos, 1.000 tiveram sentença — o restante está em andamento.

Essa é uma área com uma jurisprudência recente no Brasil, chamada Direito do Desastre. E, por isso, ainda há um desconhecimento das pessoas, que começaram a buscar os seus direitos na Justiça nos últimos anos.
José Henrique Rodrigues, advogado

Em média, os moradores recebem de R$ 10 mil a R$ 15 mil por danos morais e materiais para cobrir prejuízos, como perda de móveis e eletrodomésticos. Ações de mais de 1.000 moradores já custaram cerca de R$ 10 milhões ao estado, segundo levantamento feito pelo UOL, com o auxílio de advogados especializados nesse tipo de ação.

O Judiciário tem entendido que os moradores desses locais têm direito a indenizações. No caso da Arena do Grêmio, por exemplo, houve processo administrativo permitindo a instalação do estádio naquela região, agravando os alagamentos na Vila Farrapos, em Porto Alegre.
José Henrique Rodrigues

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Luciane Dewes Brum registrou enchente do segundo piso da casa onde mora nas imediações da Arena do Grêmio, em Porto Alegre
Luciane Dewes Brum registrou enchente do segundo piso da casa onde mora nas imediações da Arena do Grêmio, em Porto Alegre Imagem: Arquivo pessoal

Arena do Grêmio: 5 enchentes em 1 ano

Vizinho da Arena do Grêmio já enfrentou cinco alagamentos nos últimos 12 meses. Em 2023, o comerciante Marcelo de Campos Barbosa, 44, que mora na Vila Farrapos, zona norte da capital gaúcha, teve a casa invadida pela água nos meses de junho, setembro e dezembro. Em janeiro, seu imóvel foi alagado de novo.

Moradora de um imóvel a 800m do estádio, a servidora pública aposentada Luciane Dewes Brum, 50, vê a água subir cada vez mais a cada alagamento. Desta vez, a água chegou ao segundo piso da sua casa. Luciane e Marcelo estão entre os moradores da Vila Farrapos que entraram com ação nos últimos anos para processar a Prefeitura de Porto Alegre.

Problema tem se agravado na Arena por falta de manutenção e de investimentos na casa de bombas, diz advogado especialista em enchentes de responsabilidade do poder público. O equipamento faz a drenagem da água para o Guaíba.

Desta vez, a minha família perdeu tudo. Até as fotos que nos fazem lembrar da nossa história se foram com a chuva. O meu carro ainda está embaixo d'água. A nossa única opção é recomeçar. E o pior é saber que outras enchentes virão.
Marcelo de Campos Barbosa, comerciante

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Já convivia com um histórico de alagamentos, que se agravaram após a construção da Arena. Mas nada se compara com o que aconteceu com essa enchente. Se um barco não tivesse me tirado dali, eu teria morrido afogada.
Luciana Dewes Brum, servidora pública aposentada

Sem investimentos e sem manutenção adequada, as enchentes têm sido cada vez mais frequentes na Vila Farrapos. A responsabilidade é da prefeitura, que tem recebido IPTU e taxas de alvará de construção após a autorização da construção de prédios, mas está sendo negligente em relação aos alagamentos.
Rodrigo Nunes Bolbotka, advogado

Morador de Eldorado do Sul, o policial militar Paulo Sérgio Schultz já havia perdido os móveis em um alagamento em novembro de 2023
Morador de Eldorado do Sul, o policial militar Paulo Sérgio Schultz já havia perdido os móveis em um alagamento em novembro de 2023 Imagem: Arquivo pessoal

'Reconstruí para perder tudo de novo'

Em uma enchente em Eldorado do Sul, em novembro de 2023, o policial militar Paulo Sérgio Vieira Schultz, 51, já havia perdido sofá, TV, geladeira, máquina de lavar e móveis da cozinha. O prejuízo motivou uma ação contra o estado. Após o alagamento de 2 de maio, a perda foi ainda maior.

Reconstruí a minha casa após novembro para perder tudo de novo. Aluguei um caminhão para retirar meus pertences quando a chuva começou. Não deu tempo. Saí de casa só com a roupa do corpo. Perdi tudo de novo, mas as contas para pagar ficam. Para Eldorado, eu não volto mais.
Paulo Sérgio Schultz

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Moradora do bairro Americana, em Alvorada, tem convivido com enchentes e perda de móveis nos últimos 8 anos. A diarista Bianca da Silva Pereira, 36, também ingressou com ação contra o estado, pedindo indenização pelas perdas. Nesta semana, se deparou com um cenário ainda mais devastador ao ver a rua tomada pela água.

Quando voltei para casa, os móveis já estavam boiando. Mas a água já passou do teto. Foi tudo muito rápido.
Bianca da Silva Pereira

O que dizem Prefeitura de Porto Alegre e governo do RS

A prefeitura afirma que o Dmae (Departamento Municipal de Água e Esgotos) investiu R$ 82,7 milhões no sistema da Estação de Tratamento de Água São João, desde 2021. Segundo a administração, o sistema foi religado na terça-feira (7), e atende 425 mil pessoas, incluindo os moradores da Vila Farrapos, no entorno da Arena do Grêmio.

Ao todo, foram investidos R$ 592 milhões em obras para amenizar alagamentos. "E R$ 35 milhões foram investidos em dragagens de arroios para evitar inundações. Outros R$ 93,4 milhões foram utilizados na ampliação e trocas de redes de água, beneficiando 50 mil pessoas", diz nota divulgada pela Prefeitura de Porto Alegre.

Governo do RS responsabiliza prefeituras. "É do município a responsabilidade pela execução da política de desenvolvimento urbano. (...), tendo como uma de suas diretrizes gerais a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a poluição e a degradação ambiental e a exposição da população a riscos de desastres", afirmou a Procuradoria-Geral do Estado.

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