Mais amor, menos política: Evangélicos refutam preconceito contra sua fé

Chegando à sua 32ª edição este ano, a Marcha para Jesus reuniu milhares de fiéis pelas ruas centrais de São Paulo no feriado de Corpus Christi. O evento foi marcado pela presença de nomes graúdos da política, mas com um destaque para eles que foi avaliado de forma distinta por quem saiu de casa para um dia inteiro de exercício da fé.

O UOL percorreu todo o trajeto de cerca de quatro quilômetros da caminhada, da estação da Luz até o Campo de Marte, e ouviu a percepção dos fiéis que participaram do evento.

Para os presentes, o sentimento foi um misto de reprovação, indiferença e satisfação em relação aos políticos que subiram em trios elétricos e no palco principal. O ponto em comum, contudo, é que estar na marcha tinha como objetivo principal viver a própria religiosidade.

Evento religioso em trio elétrico

A movimentação nos arredores da estação da Luz já era alta por volta das 8h30. Com uma temperatura na casa dos 15°C nas primeiras horas do dia, o tempo frio e seco da capital paulista não derrubou o ânimo de quem foi à Marcha para Jesus.

Em grandes grupos, dezenas de famílias já circulavam em clima de confraternização com as camisetas oficiais da caminhada e adereços como faixas na testa, chapéus e viseiras com as inscrições "100% Jesus".

Nas saídas das escadas para o metrô, ambulantes brigavam por espaço para colocar suas bugigangas à venda. Itens como bandeiras de Israel, do Brasil e com o rosto de Jesus Cristo se esvoaçavam em vitrines improvisadas com varais.

Fiéis mais dispostos a aproveitar a festa do começo ao fim levavam nas costas mochilas lotadas de lanches e petiscos. A maioria deles eram jovens, de variadas classes sociais e etnias, que, entre um cumprimento e outro aos amigos que chegavam, faziam pequenos passos de dança como uma espécie de aquecimento.

Em volta dos trios elétricos, já era difícil ver asfalto. A multidão formava algo semelhante a um tapete nas duas principais cores da aglomeração: azul e amarelo. As equipes de segurança e apoio da marcha controlavam os cordões de isolamento com dificuldade, mas mantendo o clima fraterno da ocasião. Fiéis que aguardavam um ano inteiro para rever amigos em uma confraternização especial que tinha a figura de Jesus como eixo.

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"A gente respeita todas as diferenças. Não há nenhum tipo de posicionamento ideológico. Nós temos os políticos cristãos que participam, mas se vem alguém de esquerda ou direita, não há esse tipo de conotação. É um evento religioso, que agrega as diferentes tendências dentro do evangelho e até do catolicismo, porque é um evento cristão", disse ao UOL o apóstolo Estevam Hernandes, líder da organização.

Em 30 anos, evangélicos passaram de 6,6% para 22,2% no Brasil

Segundo o censo demográfico do IBGE, em 2000 eles representavam 15,4% da população. Em 2010, chegaram a 22,2%, um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas (de 26,2 milhões para 42,3 milhões). Em 1991, este percentual era de 9,0% e em 1980, 6,6%.

As informações, porém, já estão defasadas e serão atualizadas pelo IBGE com base no Censo feito em 2022. A data original para a coleta das informações era em 2020, seguindo a atualização padrão de 10 anos do instituto, mas foi adiada devido à pandemia da covid-19.

Não há um estudo conclusivo sobre quando o número de evangélicos vai superar a quantidade de católicos, mas estimativas apontam que isso deve acontecer na próxima década.

Músicas e louvores aqueceram o início da caminhada

Prevista para começar às 10h, a marcha teve um pequeno atraso. Por volta das 10h15, os participantes davam os primeiros passos da caminhada, embalados por canções religiosas animadas e palavras motivadoras de cima dos trios elétricos. "Quem está animado dá um grito", diziam agitadores.

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Em resposta, o público erguia as mãos e pulava. No meio da festa, não faltavam os grupos que aproveitavam o momento para tirar selfies e gravar vídeos da festa. Quem se arriscava a subir em muretas e canteiros para fazer registros melhores recebia o apoio dos que estavam em volta para evitar quedas.

No meio da caminhada, rodinhas e filas se formavam ao redor dos carrinhos de vendedores de água e outras bebidas. Mas nem o sol forte já perto das 11h impediu que a animação diminuísse. Durante o trajeto, a caminhada também foi marcada por momentos de oração, com pausas para que os fiéis pudessem se ajoelhar para fazer suas preces.

Piquenique e cochilos no caminho

Conforme a multidão chegava à concentração da marcha, no Campo de Marte, o perfil dos presentes começou a se tornar mais variado. Famílias carregando bancos de plástico ou com acompanhadas de idosos chegavam para participar das atrações do palco montado na Praça dos Heróis da FEB (Força Expedicionária Brasileira), onde vários artistas cristãos se apresentaram. Mesmo assim, mantinham mais distância da estrutura.

Por volta das 12h, grupos de jovens que acordaram cedo para participar desde o início da caminhada finalizavam a marcha e colocavam lençóis nos gramados para se sentar. Alguns também se deitavam e, com toalhas nos rostos, tiravam breves cochilos para repor as energias. Na avenida Santos Dumont, fechada para o trânsito de veículos, grupos faziam piqueniques para aproveitar o momento entre família e amigos.

"É sempre bom tirar um tempo para se aproximar e adorar a Jesus", afirmou a química Stephanie Soares, de 25 anos, que foi ao evento religioso com a irmã Sarah Soares, 16, e a amiga Letícia Yumi Shinozaki, 15.

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Tradição cristã atravessa gerações

Frequentadora da Marcha para Jesus desde 1996, a dona de casa Ana Maria, 45, é uma das veteranas do evento religioso — a festa chegou ao Brasil em 1993, mas faz parte do calendário oficial de comemorações do país desde 2009.

Desta vez, porém, a dona de casa trouxe o marido Daniel Braga, 45, os filhos, Helena, 15, e João, 7, e também os "agregados" da família. "Não deixei passar nenhuma vez. Vim com os dois na barriga. Uma vez estava grávida de seis meses e vim mesmo assim", disse Ana Maria.

Veterana na Marcha para Jesus, Ana Maria (a segunda, da direita para a esquerda) levou a família e agregados
Veterana na Marcha para Jesus, Ana Maria (a segunda, da direita para a esquerda) levou a família e agregados Imagem: Caíque Alencar - 30.mai.2024/UOL

O mesmo ocorreu com uma família que veio do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. A professora Fernanda Araújo, 37, quis unir as várias gerações da família e fez questão que a mãe dela, Efigênia Maia, 57, viesse para a edição de 2024 da Marcha para Jesus. As duas estavam também com Yago, 7, filho de Fernanda. "Ele veio pela primeira vez no meu colo, com três meses", disse a professora.

Fernanda, a primeira à esquerda, levou a mãe, Efigênia, de jaqueta rosa, pela primeira vez à Marcha para Jesus
Fernanda, a primeira à esquerda, levou a mãe, Efigênia, de jaqueta rosa, pela primeira vez à Marcha para Jesus Imagem: Caíque Alencar - 30.mai.2024/UOL
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Marcha também foi marcada por discursos de políticos

Ainda pela manhã, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) subiu no trio elétrico principal da marcha e recebeu orações dos organizadores do evento. "Eu amo Jesus Cristo", agradeceu Nunes em uma breve fala após a homenagem. Na parte da tarde, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) fez um discurso com tom religioso no Campo de Marte.

Ao lado dele no palco também estavam o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), que também discursou, e o advogado-geral da União, Jorge Messias, que leu uma mensagem de Lula.

"Quem são vocês, quem somos nós? Somos os escolhidos", afirmou o governador paulista ao microfone. "Ele já está pregando melhor que muito pastor", brincou o pastor Estevam Hernandes, organizador do evento.

"Um pé atrás" com palanque eleitorais

Presente na Marcha para Jesus pela quinta vez, o promotor de vendas Lucas Leonardo do Nascimento, de 33 anos, foi um dos que viu com desconfiança a presença de lideranças políticas no evento religioso. Na edição de 2024 da marcha, ele veio acompanhado da mulher dele, Patrícia Araújo, 46, também promotora de vendas, que comparece com ele à caminhada desde 2020.

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Eu não gostava quando políticos participavam, mas agora já não acho tão ruim. Fico um pouco com um pé atrás [com a presença de políticos], mas tem tanta gente defendendo outros interesses? Por que não podemos ter quem defenda os nossos? Lucas Leonardo Nascimento, promotor de vendas

Preconceito e amor

Moradores de Suzano, na região metropolitana de São Paulo, Lucas e Patrícia fazem parte dos fiéis que percorreram o trajeto de cerca de uma hora e meia nos trens da CPTM até chegar à Marcha para Jesus. Posicionados mais distantes do palco montado no Campo de Marte, onde a estrutura foi erguida como ponto final da caminhada, o casal ficou sentado no gramado com lanches e bebidas trazidos de casa.

Esse é um evento para Jesus, que fala sobre o amor. Eu sempre pesquiso o histórico de quem está lá [no palco]. Me incomoda quem explora a fé, então eu sempre vejo se a pessoa realmente defende nossos valores. Muita gente vem aqui em busca de votos, mas não gosto disso. Jesus não tinha esse discurso irado que a gente costuma ver [na política]. Ele era pacífico. Lucas Leonardo Nascimento, promotor de vendas

Nós já sofremos muito preconceito. E é uma coisa que pode acontecer em qualquer lugar, no trabalho, entre amigos e até em casa mesmo. Mas o que nós vemos aqui é um evento que não tem bagunça, é um evento para adorar a Jesus. Patrícia Araújo, promotora de vendas

Lucas e Patrícia vão juntos à Marcha para Jesus desde 2020
Lucas e Patrícia vão juntos à Marcha para Jesus desde 2020 Imagem: Caíque Alencar - 30.mai.2024/UOL
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"Política não se mistura com religião"

Vindo da região do Butantã, na capital paulista, o analista financeiro J.M.A.S., de 31 anos, foi categórico ao afirmar que reprova a participação políticos na Marcha para Jesus. Seguidor da Assembleia de Deus A.D. Nascer para Cristo, ele foi à caminhada com a mulher L.A.S., de 24 anos, e a amiga enfermeira I.S., de 22. Os três pediram para não serem identificados pela reportagem por medo de atos de intolerância religiosa.

Não gosto que políticos participem porque a política é uma coisa do homem. E a religião é de Deus. A gente está aqui para falar de Jesus. Para mim, são coisas que não se misturam. Já perdi amizades e relações com familiares por causa da religião. Mas é um preconceito que vem da parte deles, não é da gente. J.M.A.S., analista financeiro

É muito difícil porque as pessoas colocam muitos rótulos quando, na verdade, a gente só quer falar de amor. Tiram muito sarro da gente e a religião vira uma coisa que vem antes que a gente possa começar a conversar. J.M.A.S., analista financeiro

"Eu fui criada em família católica e, quando entrei para a Renascer, em 2022, senti muita resistência dos meus familiares", acrescentou I.S., que esteve na Marcha para Jesus pela terceira vez.

Casal sente falta de uma festa para evangélicos

O assistente de laboratório Pedro Felipe Simplício Machado, de 30 anos, e a cobradora Bruna Machado, 28, vieram de Jundiaí para Marcha para Jesus. Acompanhados dos pais de Pedro, eles minimizaram as críticas de que o evento religioso atrai mais o público conservador. O assistente também não se importa com a participação de políticos, mas diz que não se deixa enganar por falsas promessas.

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Eu acho que não tem problema [políticos participarem]. Tem tanta gente da esquerda que aproveita a parada LGBT. Por que não podemos ter um evento para nós? Tem gente que tenta explorar, sim, [com pedido de voto], mas a trajetória anterior da pessoa vai dizer se o que ela está falando no palco é verdade ou não. Pedro Felipe Simplício Machado, assistente de laboratório

Organizadores estimaram 2 milhões na Marcha para Jesus

Segundo a equipe do evento, o cálculo foi feito considerando o horário das 10h às 22h. O Monitor do Debate Político, da USP, contabilizou cerca de 29 mil pessoas por volta das 11h20, horário de pico da caminhada, com ajuda de um software que analisou fotos tiradas por drones. Como a concentração final foi perto do Campo de Marte, os pesquisadores disseram que não puderam sobrevoar o local. Por isso, não houve contagem lá.

Procurada pelo UOL, a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) disse que não tinha uma estimativa do público presente.

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