Memórias destruídas: a cobertura das chuvas no RS para um repórter gaúcho
A neblina na serra gaúcha atrasou em 24 h o embarque de São Paulo e Caxias do Sul (RS). Quando o avião pousou, não ouvi passageiros resmungando. Ouvi aplausos de quem não tinha tempo para reclamar e buscava talvez concentrar as energias em um esforço coletivo em meio à maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul. Foi a primeira vez em que segurei as lágrimas.
Fazer a cobertura jornalística das enchentes nas cidades gaúchas foi a experiência que me deixou mais fragilizado emocionalmente ao longo das mais de duas décadas de profissão. Sempre tentei me blindar, principalmente quando estava diante de casos em que o sentimento poderia interferir na apuração.
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Foi o que fiz em 2007, quando remontei os últimos passos de um homem negro vítima de violência policial em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre. Usei essa blindagem emocional no caso Nardoni, já em São Paulo. Adotei esse mesmo pragmatismo para cobrir a violência urbana ao longo dos 11 anos em que morei no Rio de Janeiro. E também tentei afastar as emoções até no período em que fiquei em Santa Maria (RS) para cobrir a tragédia da boate Kiss.
Dessa vez, não consegui. Havia ali um sentimento de reconexão e pertencimento, apesar dos 15 anos morando fora do Rio Grande do Sul.
Não há escudos ou proteções emocionais possíveis quando a cobertura jornalística também envolve a nossa própria história. Era como se eu cruzasse com memórias destruídas no caminho de carro de Caxias do Sul até Porto Alegre, cidade onde nasci.
Eu me senti como o álbum de fotos com imagens borradas pela lama que encontrei entre os móveis danificados em frente a uma casa em Eldorado do Sul (RS), onde policiais faziam rondas de barco para evitar saques.
As pessoas em frente a uma caçamba de lixo no centro histórico da capital gaúcha à procura de itens de camelôs levados pela inundação poderiam ser velhos conhecidos de alguma recordação perdida. "Só tenho a roupa do corpo", disse um deles.
Aqueles que caminhavam entre a lama próximo ao mercado público sem desistir de um fio de esperança por dias melhores eram como sombras de memórias ensolaradas de um passado esquecido de uma Porto Alegre da minha infância, adolescência e começo da vida adulta que não existe mais.
As lembranças passavam em um cenário de destruição. Quando criança, costumava viajar todo ano de carro com a família pela BR-290 de Porto Alegre a Bagé, onde meus pais nasceram.
Nesse mesmo trajeto, agora havia centenas de pessoas em barracas com lonas de plástico às margens da estrada e da sociedade. Sem proteção da chuva ou do frio, dependendo de doações para ter o que comer. Vi estradas destruídas, animais mortos e uma improvável rota de barco ao lado.
Em meio à cobertura, o barulho de uma forte chuva me fez acordar de madrugada. Era a trilha sonora do horror para milhares de gaúchos que tiveram as vidas e as casas inundadas. Horas depois, presenciei Porto Alegre alagar.
No bairro Menino Deus, pessoas saíam às pressas dos prédios. Algumas delas, auxiliadas por bombeiros em embarcações. Outras, por conta própria mesmo.
Era o que elas mesmas descreviam como um pesadelo sem fim em meio ao fracasso em sucessivas tentativas para que a vida pudesse voltar ao normal.
Estar ali para fazer reportagens sobre o que acontecia em Porto Alegre parecia um longo obituário apocalíptico, como se estivesse enterrando ali as minhas próprias origens. Mas uma frase ecoava como um mantra naquele cenário de perdas e tristeza: "vai passar", diziam.