Voepass: qual é o passo a passo da investigação de acidentes no Brasil?

A investigação de um acidente aéreo, como a que vem sendo feita para apurar o que aconteceu com o avião ATR-72 que caiu em Vinhedo (SP), matando 62 pessoas, é um processo detalhado, realizado com o objetivo de evitar que novas tragédias ocorram no futuro.

Como funciona

No Brasil, essa tarefa cabe à Aeronáutica, que segue rigorosamente os parâmetros internacionais estabelecidos pela OACI (Organização de Aviação Civil Internacional). Mas como funciona exatamente esse processo, segundo o Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), da FAB (Força Aérea Brasileira):

  1. Notificação do acidente: o primeiro passo é a notificação imediata do acidente às autoridades competentes. No Brasil, isso é feito junto ao Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA).
  2. Abertura da investigação: após a notificação, uma Comissão de Investigação (CI) é designada. Essa comissão é formada por especialistas em diversas áreas relacionadas à aviação.
  3. Preservação do local do acidente: as autoridades garantem a preservação do local do acidente para que as evidências não sejam comprometidas. Isso inclui a segurança dos destroços e do entorno.
  4. Reunião de evidências: a comissão começa a reunir todas as evidências disponíveis, como gravações de voo, comunicações da tripulação, condições meteorológicas, estado da aeronave e depoimentos de testemunhas.
  5. Análise dos fatores contribuintes: a comissão analisa todos os dados coletados, focando em três principais áreas: Fatores Operacionais (condições do voo e desempenho da tripulação), Fatores Materiais (integridade da aeronave e equipamentos), e Fatores Humanos (estado físico e psicológico dos envolvidos).
  6. Colaboração internacional: se necessário, especialistas internacionais (como representantes do fabricante da aeronave e do operador) são convidados a participar da investigação, garantindo uma análise completa e imparcial.
  7. Elaboração de recomendações preliminares: com base na análise inicial, a comissão pode emitir Recomendações de Segurança de Voo (RSV) preliminares para evitar riscos imediatos em outras operações similares.
  8. Relatório de progresso: durante a investigação, a comissão pode emitir relatórios de progresso para informar as autoridades competentes e, em alguns casos, o público, sobre os avanços na investigação.
  9. Conclusão da investigação: após analisar todas as evidências e fatores contribuintes, a investigação é concluída com a produção do Relatório Final. Este relatório detalha as conclusões oficiais e as Recomendações de Segurança de Voo (RSV) que devem ser adotadas para prevenir futuros acidentes.
  10. Divulgação do relatório final: o Relatório Final é divulgado publicamente pelo CENIPA, conforme determina a legislação brasileira (NSCA 3-13). Este relatório é acessível à imprensa e aos familiares das vítimas.
  11. Entrega dos destroços: após a liberação da investigação, os destroços da aeronave são entregues à autoridade policial local ou ao proprietário da aeronave, para que sejam realizados procedimentos necessários, como diligências policiais ou descarte.
  12. Implementação das recomendações: finalmente, as Recomendações de Segurança de Voo (RSV) emitidas no Relatório Final são implementadas pelas partes envolvidas, como companhias aéreas e fabricantes, para garantir que os erros identificados não se repitam.

O que dizem especialistas

O coronel da reserva Roberto Santos, piloto e especialista em Segurança, explica que a investigação de acidentes aéreos envolve a análise minuciosa de todas as informações disponíveis para identificar os fatores contribuintes, ao invés de buscar uma única causa isolada. Essa abordagem é essencial para formular recomendações de segurança que evitem a repetição de incidentes semelhantes no futuro, diz o coronel.

O Sipaer (Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) opera com a compreensão de que acidentes são multifatoriais. Isso significa que eles resultam de uma combinação de elementos como qualificação da tripulação, condições técnicas da aeronave e fatores ambientais.

Um acidente aeronáutico nunca ocorre por um fator isolado, a menos que seja uma decisão suicida do piloto, o que é uma exceção extrema. Fora isso, estamos sempre lidando com um conjunto de fatores que se interligam e resultam no acidente. O importante é que o SIPAER não busca culpados, mas sim entender como esses fatores se combinaram para que possamos evitar que isso aconteça novamente.
Roberto Santos
Além disso, o especialista ressalta que a investigação não tem caráter punitivo, e sim preventivo. "É importante frisar que a responsabilidade por identificar culpados recai sobre as autoridades policiais e judiciais". O Cenipa, por sua vez, concentra-se em entender os fatores técnicos e operacionais que contribuíram para o acidente, focando na segurança aérea.
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O professor Éder Luiz Oliveira, que leciona Manutenção de Aeronaves na Unesp, destaca a importância do aprendizado proveniente das investigações de acidentes. Embora ele não seja um investigador de acidentes aeronáuticos, ele reconhece a relevância desse conhecimento.
Boa parte da população sabe que aeronaves comerciais possuem caixas pretas, que contêm o Gravador de Dados de Voo e o Gravador de Voz do Cockpit. Esses equipamentos são fundamentais na investigação, mas o processo não se limita a eles. A investigação inclui análises detalhadas, como a verificação de lâmpadas no cockpit, a análise de combustíveis para detectar contaminação e a inspeção de velas de ignição de motores a pistão, que podem revelar até 12 situações diferentes sobre o desempenho do motor.
Éder Luiz Oliveira
O professor também explica que a investigação vai além dos dados eletrônicos. Ela envolve a análise de rupturas em mangueiras, tubos e cabos para determinar se os danos são recentes. Além disso, a inspeção de detritos pode identificar falhas mecânicas, como fadiga do metal ou corrosão, e as pás ou hélices dos motores são examinadas para verificar se estavam em funcionamento no momento do impacto.
Além disso, a investigação frequentemente utiliza recursos computacionais para simular e reconstruir o voo. Isso é feito com base nos dados recuperados das caixas-pretas. O histórico de manutenção da aeronave também é revisado minuciosamente, práticas essenciais para entender a sequência dos eventos que levaram ao acidente e prevenir futuras ocorrências.

Mudanças futuras

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará nesta quarta-feira (14) uma ação que questiona as regras de investigação de acidentes aéreos e o sigilo dessas investigações. A ação, iniciada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em 2017, contesta trechos do Código Brasileiro de Aeronáutica, especialmente sobre o compartilhamento de informações com outros órgãos e a Justiça, incluindo o acesso prioritário do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Sipaer) a itens como as caixas-pretas.

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A PGR deseja ter maior acesso aos dados coletados pelo Sipaer, que atualmente não podem ser usados como prova em processos judiciais ou administrativos sem uma ordem judicial. O julgamento já havia começado em 2021, mas foi interrompido por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, e desde então tem sido adiado diversas vezes.

Sobre o acidente ocorrido em Vinhedo, a FAB (Força Aérea Brasileira), por meio do Cenipa, informa que, com a conclusão da ação inicial, a investigação, agora, avança para a fase de Análise de Dados. Neste estágio, serão examinadas as atividades relacionadas ao voo, o ambiente operacional e os fatores humanos, "bem como um estudo pormenorizado de componentes, equipamentos, sistemas, infraestrutura, entre outros detalhes", disse o órgão, em nota.

"A conclusão dessa investigação terá o menor prazo possível, dependendo sempre da complexidade da ocorrência. O Cenipa reitera a intenção e previsão de divulgar, no prazo estimado de 30 dias, o relatório preliminar com dados factuais do acidente aeronáutico", esclarece.

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