Toda ONG faz o que o Estado deveria fazer, diz líder de projeto na Amazônia

Criado na década de 1980 para levar atendimento médico a comunidades rurais na região de Santarém (PA), o Projeto Saúde & Alegria dirige hoje várias iniciativas sociais, econômicas e ambientais na Amazônia. Em 2019, quando já tinha mais de 30 anos de atuação, a ONG sofreu buscas e apreensões da polícia por suspeita de provocar incêndios florestais para angariar doações, um discurso que foi estimulado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL).

O inquérito da Polícia Federal, concluído em 2021, não viu nenhuma ligação do Saúde & Alegria com as queimadas, e o caso foi encerrado sem apontar irregularidades. O episódio, porém, motivou ataques à imagem da entidade e ao trabalho de ONGs no Brasil. O coordenador do Saúde & Alegria, Caetano Scannavino, avaliou em entrevista ao UOL que a desconfiança sobre instituições do Terceiro Setor é movida por mentiras que, na maioria das vezes, escondem interesses econômicos.

Assim como várias outras ONGs, nós sofremos tentativas de criminalização. No caso dos incêndios, tentaram emplacar o discurso de que nós botávamos fogo na floresta com apoio do Leonardo di Caprio. Era uma acusação absurda, mas serviu para duas coisas: nós saímos desse processo com mais credibilidade, porque mostramos que nossa atuação é regular, e realmente fizemos parceria com o Leonardo Di Caprio, porque ele conheceu nosso projeto e resolveu apoiar
Caetano Sacnnavino, coordenador do Projeto Saúde & Alegria

O papel das ONGs no Brasil

Para Scannavino, as ONGs fazem diferença onde a presença do Estado é insuficiente. Ele avalia que as entidades têm mais agilidade e menos burocracia para implementar projetos-piloto que, futuramente, podem ser conduzidos pelo próprio Estado, na forma de políticas públicas.

O Saúde & Alegria lançou um serviço de saúde que acabou assumido pelo poder público. É o atendimento médico por meio de barcos-hospital, que permitem levar consultas, exames, partos e até cirurgias a comunidades ribeirinhas distantes de qualquer centro urbano. Iniciado pelo Saúde & Alegria há mais de 30 anos, o projeto foi incorporado pela prefeitura de Santarém.

Segundo o coordenador, as ONGs atuam nas áreas em que os governos investem menos que o necessário. Um dos eixos de atuação do Saúde & Alegria é o de apoio a projetos de agricultura sustentável que geram renda para as comunidades. Para Scannavino, o Estado gasta muito para proteger a Amazônia de atividades como o garimpo e o tráfico de madeira, mas oferece poucas alternativas econômicas para a população, o que cria uma brecha para o trabalho das ONGs.

A Amazônia tem muita insuficiência do Estado. A saúde básica, por exemplo, é responsabilidade do município, mas é um desafio imenso trabalhar na ponta, em áreas remotas. As ONGs acabam fazendo o que o governo deveria fazer, mas sem nenhuma pretensão de substituir o Estado, e sim de somar esforços

No caso da Amazônia, as ONGs são agentes de vigilância que denunciam crimes ambientais em uma região imensa, difícil de fiscalizar. E também são importantes para dar voz a segmentos que ficam invisíveis quando tratamos da formulação de políticas públicas. Mas é claro que isso traz, como consequência, uma série de ataques de quem se beneficia dessa ausência do Estado

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Barco-hospital Abaré, idealizado pelo Saúde & Alegria, em ação na Amazônia
Barco-hospital Abaré, idealizado pelo Saúde & Alegria, em ação na Amazônia Imagem: Divulgação/Saúde & Alegria

Para coordenador, ONGs devem investir em comunicação

Scannavino critica o modo como as ONGs costumam ser retratadas na imprensa. Ele citou, como exemplo, o uso do título "farra das ONGs" para uma série de reportagens do UOL publicada em julho. A série, composta de 8 matérias, mostrou que ONGs controladas por políticos do Rio de Janeiro receberam repasses milionários, por meio de emendas parlamentares, e destinaram esse dinheiro a empresas suspeitas, que eram contratadas para serviços nos quais não tinham experiência.

Para Scannavino, as ONGs devem ser cobradas a prestar contas de suas atividades, mas a sociedade deve diferenciar o joio do trigo. Na visão dele, a forma como se noticiam casos de corrupção, que envolvem entidades específicas, ajudam a criar uma imagem falsa de que não existe fiscalização nem transparência sobre a atuação delas.

O coordenador avalia que todas as ONGs que atuam na Amazônia sofrem tentativas de criminalização, em maior ou menor escala. Segundo ele, setores atrasados do agronegócio estimulam discursos de que as ONGs são movidas por interesses estrangeiros e não estão preocupadas com os interesses reais da população.

Nós, como ONGs, temos que trabalhar na comunicação. Temos que olhar para dentro e pensar em como criar uma relação mais construtiva com a sociedade. Mas é preciso também pedir ao jornalismo sério e responsável para não alimentar falácias ou generalizar a atuação do setor

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A campanha de criminalização das ONGs prospera quando o debate é raso. No caso da Amazônia, políticos e empresários propagam falácias de que as entidades estão a serviço de estrangeiros que querem explorar a floresta, quando na realidade são esses mesmos grupos que lucram com a destruição da floresta

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