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Com 5 mi de caixas, Prevent Senior e Hapvida continuam a receitar kit covid

O plano de saúde Hapvida comprou mais de 1 milhão de caixas de cloroquina em março, quando ineficácia do medicamento para covid já havia sido comprovada - April Thornberg/Getty Images
O plano de saúde Hapvida comprou mais de 1 milhão de caixas de cloroquina em março, quando ineficácia do medicamento para covid já havia sido comprovada Imagem: April Thornberg/Getty Images

Marcelle Souza,

16/09/2021 15h52Atualizada em 16/09/2021 17h27

Desde o início da pandemia, duas redes de hospitais particulares compraram mais de 5 milhões de caixas de remédios comprovadamente ineficazes contra a covid-19, como cloroquina, ivermectina e hidroxicloroquina. É o que mostra uma compilação inédita feita pela Repórter Brasil a partir de documentos internos dos planos de saúde proprietários dos hospitais: a Prevent Senior e a Hapvida.

Os dados deixam claro que a prescrição seguiu ocorrendo mesmo após fabricantes de cloroquina terem divulgado notas não recomendando o medicamento para covid, e seis meses depois de a OMS ter declarado a ineficácia da hidroxicloroquina. Relatos
de pacientes mostram que medicamentos do chamado kit covid seguem sendo receitados.

Uma das compras que mais chamaram a atenção dos especialistas ouvidos pela reportagem foi feita pela Hapvida em março deste ano, quando foi adquirida mais de 1 milhão de caixas de cloroquina — 15 vezes mais que o total comprado um ano antes, quando a pandemia estava no início e a eficácia do medicamento ainda era estudada.

No caso da ivermectina, a mesma operadora comprou entre março e abril deste ano mais de 800 mil caixas do remédio cujo uso para covid chegou a ser ironizado pela FDA, agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos.

Somadas as compras, daria para distribuir praticamente uma caixa de um dos medicamentos do kit para cada um dos quase 5 milhões de beneficiários das operadoras, visto que a Prevent tem hoje 540 mil pacientes e a Hapvida, que domina o mercado no Nordeste, tem 4,8 milhões.

Por trás dessa distribuição em massa pelas operadoras, havia uma pressão por parte da chefia de ambas para que seus médicos prescrevessem esses remédios. Há ainda denúncias de médicos que relatam punições por se negarem a receitar o kit sendo engavetadas, inação de conselhos e lentidão dos órgãos públicos responsáveis.

'Não é uma discussão sobre autonomia médica'

Pelas normas de conduta médica, os médicos podem prescrever cloroquina e hidroxicloroquina (indicados para artrite reumatóide e lúpus) e a ivermectina (para o tratamento contra vermes) para covid. É o fato de as operadoras comprarem milhões de comprimidos para os pacientes - internados em seus hospitais ou que passaram por consultas em teleatendimento - e pressionarem seus médicos a receitarem esse kit covid que as tornou alvo de investigações.

"Ao contrário do que as empresas dizem, não é uma discussão sobre autonomia médica ou prescrição off label [uso de um remédio sem seguir as indicações originais]. Essas operadoras incluíram em seus protocolos medicamentos comprovadamente ineficazes, colocando em risco a saúde dos usuários", afirma Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

No caso da Hapvida, foram compradas 3,6 milhões de caixas dos remédios que compõem o kit entre março de 2020 e maio de 2021, sendo 2,3 milhões de caixas de cloroquina e hidroxicloroquina, e 1,3 milhão de caixas de ivermectina. Os dados constam em um documento interno enviado pela operadora à CPI da Covid.

Já a Prevent Senior teria comprado o kit apenas em 2020, segundo dados obtidos com exclusividade pela reportagem. No total, só entre março e junho de 2020 foram compradas ao menos 1,5 milhão de caixas dos remédios do kit, o que equivale a quase três vezes o número de clientes da empresa. Em março do ano passado, foram compradas 240 mil caixas de cloroquina e hidroxicloroquina; em abril, mais 469 mil; e em maio e junho, foram pelo menos 400 mil por mês.

Na Prevent Senior, os kits eram distribuídos nas farmácias dos hospitais da operadora, no caso das consultas presenciais, ou enviados para a casa dos pacientes, quando o atendimento era feito por telemedicina.

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Médicos da Prevent Senior pressionavam pelo WhatsApp a prescrição do kit-covid
Imagem: Reprodução

A Repórter Brasil apurou que as duas empresas continuaram pressionando médicos para a distribuição em massa e de forma indiscriminada dos kits. E os medicamentos seguem sendo receitados, conforme relatos de pacientes ouvidos pela reportagem e registros no site Reclame Aqui.

"Uma médica da Prevent ligou oferecendo o kit covid com cloroquina e hidroxicloroquina [...] e revelou que eles são obrigados pela empresa a ofertar o kit", disse uma cliente no último dia 13.

Mais de um ano de denúncias

Entre as primeiras denúncias relacionando o kit covid às operadoras está a de um médico cearense que, em maio do ano passado, denunciou a Hapvida ao Cremec (Conselho Regional de Medicina do Ceará) após ter sido demitido por se negar a prescrever o kit de forma indiscriminada. Até hoje, o conselho não concluiu a investigação. Questionado, o órgão disse que a apuração ocorre em sigilo. O caso chegou ao Ministério Público do Ceará, que aplicou uma multa de R$ 468 mil à Hapvida. A operadora recorreu.

Alguns meses depois da primeira denúncia contra a Hapvida, foi a vez da Prevent, quando o jornal "O Estado de S.Paulo" noticiou que a empresa estava distribuindo os kits pelo correio. Em abril, a Globo News mostrou que a Prevent distribuía cloroquina e pressionava médicos.

Depois das denúncias, Hapvida e Prevent Senior foram incluídas nas investigações da CPI da Covid. "A informação que se tem é que isso foi um acerto entre a direção do hospital e o governo. E o chamado gabinete paralelo estaria por trás dessa. Ele era o elo entre o Prevent Senior e o governo federal", disse o senador Humberto Costa (PT).

Era pelos grupos de WhatsApp que vinha a pressão para que os médicos das operadoras prescrevessem os medicamentos e também não informassem os pacientes e familiares sobre o tratamento. A Repórter Brasil teve acesso a prints de conversas e, em uma delas, Pedro Benedito Batista Junior, diretor-executivo da Prevent que deve depor em breve na CPI, pede que os médicos "não percam a oportunidade de testar pacientes".

Pedro Benedito Batista Junior, diretor-executivo da Prevent, pede em mesagem que os médicos "não percam a oportunidade de testar pacientes". - Reprodução - Reprodução
Pedro Benedito Batista Junior, diretor-executivo da Prevent, pede em mesagem que os médicos "não percam a oportunidade de testar pacientes"
Imagem: Reprodução

Um médico que trabalhava no Hospital Antônio Prudente [administrado pela Hapvida, em Fortaleza] disse que sofria essa mesma pressão, inclusive com ameaças de demissão para quem não receitasse o kit.

Investigações arquivadas

O caso do médico cearense não é isolado em termos de investigações arquivadas sobre a pressão por receitar ivermectina e cloroquina. Há outras denúncias que foram para a gaveta, sem punições às operadoras, que também acabam sendo beneficiadas pela lentidão de outros órgãos responsáveis.

Em São Paulo, a Prevent Senior também é investigada pelo Ministério Público, mas a Promotoria de Defesa do Consumidor pediu, em junho, o arquivamento do processo por falta de provas. O caso, no entanto, segue aberto na Promotoria de Saúde Pública.

O Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) também apura o caso desde abril, mas o processo segue sem conclusão. Questionado, disse que a investigação é sigilosa. Já a ANS apura outras denúncias contra duas operadoras, que seguem sob sigilo.

O Idec enviou uma denúncia para a ANS, o Ministério Público e a CPI contra as duas operadoras. "Concluímos que as empresas não cumpriram com obrigações importantes que elas têm com seus consumidores e devem ser sancionadas por isso, inclusive para reverter e reparar o quadro de desinformação generalizada, como também eventuais danos sofridos pelos usuários", diz Navarrete, do Idec.

A Prevent não comentou os dados nem as denúncias, disse apenas que "atuou dentro dos parâmetros éticos e legais e, sobretudo, com respeito aos beneficiários". Já Hapvida disse que "respeita a soberania médica e que todos os tratamentos são de inteira autonomia do profissional, decididos em comum acordo com os pacientes". (Leia a íntegra das notas).