'Voto de protesto pode decidir eleições', diz líder do movimento negro
Após o movimento negro declarar apoio à candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) à Prefeitura de São Paulo, líderes de organizações sociais que lutam contra a discriminação racial esperam que o voto da população negra produza o efeito semelhante ao notado nas últimas eleições norte-americanas. Nos EUA, o candidato democrata, Joe Biden, venceu em redutos republicanos, como a Georgia, como apoio da população negra.
O combate ao racismo voltou a gerar manifestações no Brasil na semana passada, após a morte de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, que foi espancado em uma unidade do Carrefour de Porto Alegre. "O voto de protesto negro pode decidir eleições no Brasil", diz Douglas Belchior, coordenador da Uneafro e membro da Coalizão Negra por Direitos. Ainda assim, ele diz ser cético quanto à concretização de pautas antirracistas.
Boulos vem acenando ao movimento negro apontando que seu plano de governo traz medidas antirracistas específicas em diversas áreas, como a criação de um fundo municipal para combate ao racismo e o estabelecimento de cotas raciais para o serviço público na cidade. O plano de governo de seu adversário, Bruno Covas (PSDB), prevê genericamente o combate ao racismo e a todas as formas de discriminação e preconceito.
Em manifesto endossando a chapa de Boulos e Erundina, um grupo com mais de 20 organizações e coletivos negros critica duramente as propostas de Covas na área. "O PSDB de Bruno Covas representa o projeto político genocida praticado há décadas por governos tucanos, seja em nível municipal, seja nos momentos de dobradinha com governos estaduais, como é o caso agora, com Covas-Doria", escreveram as organizações no manifesto.
Em entrevista ao UOL, Belchior e Regina Lúcia dos Santos, coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado (MNU), explicam por que movimentos negros decidiram se posicionar agora no segundo turno e defender uma candidatura.
São Paulo é uma cidade extremamente desigual do ponto de vista racial e social. Impossível que palavras numa folha de papel deem conta do que nós vimos e que não se efetivou. Ele [Bruno Covas] não fará um combate ao racismo porque ele fez um governo de agravamento da situação de desigualdade racial.
Regina Lúcia dos Santos, coordenadora estadual do MNU
Leia os principais trechos da entrevista:
UOL - Como a morte de Beto Freitas pode se aproximar de desdobramentos vistos no caso do George Floyd?
Douglas Belchior - Na última semana, vimos o trágico assassinato do Beto Freitas, que foi estupidamente morto pelas forças de segurança privada do Carrefour. A situação mobilizou o país inteiro, com protestos inclusive em São Paulo.
O voto de protesto negro no Brasil pode decidir as eleições, assim como decidiram nos Estados Unidos. Esse é o contexto que a gente vive. Daí a importância de a campanha reafirmar seu compromisso com o antirracismo. O voto engajado do protesto negro e o dos brancos antirracistas pode se multiplicar e ser responsável pela virada no próximo fim de semana. Não só acredito que sim, como a pesquisa demonstra isso.
Nas últimas pesquisas do Datafolha, o que a gente percebeu é que a candidatura do PSOL cresceu entre indecisos e aqueles que votariam nulo. O apoio ao Boulos cresceu nesse perfil, principalmente entre os que se autodeclaram como pretos. Entre homens de menor renda, o mesmo perfil dos que sofrem com a violência que vitimou o Beto, a intenção de votos cresceu.
O sentimento da necessidade de enfrentar o racismo pode ser despejado numa candidatura se ela se coloca nesse lugar. Precisamos de um governo do qual a gente possa esperar respostas concretas, que a gente possa cobrar e que tenha percepção da importância do tema. O voto de protesto negro e da repulsa contra a violência racista pode decidir eleições no Brasil.
UOL - No primeiro turno, o movimento negro não endossou nenhuma chapa especificamente. Por que só se posicionar agora?
Douglas Belchior - O movimento negro não existe no singular, existe no plural. São movimentos negros com posicionamentos diversos que, de alguma maneira, estiveram envolvidos na campanha eleitoral. A Uneafro, da qual eu participo, elegeu a candidatura do quilombo periférico e apoiou o PSOL, embora não tenha colocado publicamente.
Regina Lúcia dos Santos - Nós do MNU de São Paulo fizemos uma discussão e já havíamos decidido que apoiaríamos apenas candidatos negros ou que levassem a pauta racial na esquerda. Ao assinar o manifesto de apoio à chapa Boulos e Erundina, só estamos cumprindo uma decisão que tomamos em fevereiro. Boulos é a candidatura de esquerda na cidade de São Paulo.
UOL - Que aspecto dentro do plano de governo da chapa Boulos e Erundina motivou os movimentos negros a manifestarem apoio?
Regina Lúcia dos Santos - O que fez a gente se aproximar da candidatura Boulos é que a gestão Covas atacou o direito a uma cidade menos desigual. Ele passou o governo todo atacando a população moradora de rua, atacando a educação, diminuindo investimentos e privatizando as unidades de saúde básica, serviços usados pela população negra. Para os lutadores antirracistas, uma aproximação do governo Covas é impossível.
Douglas Belchior - Dentre as duas candidaturas, a mais próxima da agenda do movimento negro é a de Boulos e Erundina. Penso que essa pauta está melhor colocada na candidatura do PSOL, pela trajetória histórica, compromisso público e o que pretende colocar em prática. O plano de governo coloca muito bem a necessidade de tratar a questão racial de maneira transversal e amplia o debate para além da presença de figuras negras no primeiro escalão ou no secretariado.
A candidatura de Covas e do PSDB não estão sequer próximas das nossas aspirações. Aliás, causa surpresa que o Covas tenha incorporado o debate racial no seu discurso. Nos últimos anos, o PSDB tem referendado posicionamentos extremamente racistas e genocidas, como a promoção da violência policial e do encarceramento em massa.
UOL - 37% da população de São Paulo é negra, mas, mesmo na campanha do Boulos, pouco se falou em raça. Por que os candidatos optaram por isso?
Regina Lúcia dos Santos - Eu acho que os candidatos optaram por não falar na questão racial por ser um assunto muito difícil num país extremamente racista, ainda mais em um momento em que se quer angariar votos de todos os lados. O Brasil tenta manter abafada a discussão sobre o racismo e, obviamente, não seria diferente no momento de eleição.
Douglas Belchior - A pauta racial está imposta pela conjuntura e pelo momento histórico. Infelizmente, o debate político eleitoral deixa a desejar. A cidade de São Paulo tem desafios imensos e o pano de fundo deles é o debate racial: a crise econômica fruto da pandemia de coronavírus afeta especialmente as periferias, territórios de maioria negra; são pessoas negras a maioria esmagadora dos trabalhadores informais afetados pela pandemia, isolamento social, falta de apoio governamental e redução do auxílio emergencial; grande parte dos que dependem do SUS para ter tratamento, que deixou a desejar na resposta à pandemia, são pessoas negras.
Em todas as esferas, estamos falando de racismo. No Brasil, os conflitos sociais e as desigualdades são antes raciais, e não é diferente em São Paulo. Por isso, esse debate racial deveria ser elemento central no ambiente político eleitoral. Mas não é, porque, via de regra, o debate público e político, é embranquecido.
UOL - O programa do Covas, que está na liderança das pesquisas eleitorais, diz que sua gestão combaterá o racismo e todas as formas de preconceito e discriminação. Isso não é o suficiente?
Regina Lúcia dos Santos - Só dizer não é o suficiente. Combater o racismo institucional significa combater suas causas e consequências. Ele fez um governo de retirada de direitos da população negra, pobre e periférica. É impossível combater o racismo institucional sem a população negra ter acesso a uma educação pública de qualidade e serviços de saúde. E isso tem sido constantemente atacado.
Douglas Belchior - As repetidas gestões do PSDB, tanto na prefeitura quanto no Estado, são a própria prova de que não há compromisso com o enfrentamento ao racismo. Pelo contrário, promovem políticas que aprofundam a desigualdade racial. É só observar a política de segurança pública. Existe uma aliança macabra que sintoniza a política de segurança pública do governo com a da cidade de São Paulo. É na cidade onde mais acontece a barbárie de tortura e assassinatos de jovens negros pela polícia, sem nenhum enfrentamento dessa realidade. A prefeitura tem o poder de, pelo menos, constranger o governo estadual a não agir. É o que a gente espera do governo Boulos e Erundina ou de qualquer governo progressista.
UOL - As propostas ou mesmo o posicionamento de Guilherme Boulos resolvem os problemas com forte aspecto racial de São Paulo?
Regina Lúcia dos Santos - É óbvio que não. Elas são um aspecto. A implementação das políticas favorece e facilita o combate ao racismo, mas esse combate é estrutural e estruturante nas relações do capitalismo.
UOL - No caso de Boulos sair derrotado nas urnas, como o movimento negro pensa e se articula para atuar sob uma gestão de Bruno Covas? Há espaço para aproximação?
Regina Lúcia dos Santos - No caso da derrota do Boulos, o que espero que não aconteça, o movimento negro unificado continuará a ser de resistência, fiscalização, de luta e de proposição de políticas públicas que deem conta de uma vida melhor para a população negra.
Douglas Belchior - Movimento é movimento, governo é governo. Essas coisas não devem se misturar. Seja qual for o governo, a postura do movimento será a de apresentar reivindicações e cobrar do governo eleito que se dedique ao enfrentamento do racismo. Se houver a reeleição do Covas, teremos mantido no poder da cidade uma força política cujo compromisso com as elites e com o pensamento conservador já conhecemos.
A não ser que haja uma grande surpresa, e não acredito nisso, a postura é de uma oposição permanente e de cobrança sistemática para a política de enfrentamento ao racismo ser implementada. Ainda assim, acredito na eleição de Boulos e Erundina. Isso abriria uma nova perspectiva de atuação nessa área.
Sabemos que, mesmo nas experiências em que a esquerda esteve no governo, deixou muito a desejar, apesar dos avanços produzidos. Mas nós precisamos caminhar para a frente e fazer dessa próxima experiência progressista em São Paulo melhor do que foram as demais nessa área. O movimento negro estará aí para cobrar quando necessário.
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