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Realidade A e realidade B: Uma transformação na narração de histórias

Haruki Murakami

The New York Times

31/12/2010 07h05

Quais foram os eventos que delimitaram o espírito do século 21 do espírito do século 20?

De uma perspectiva global, foram, primeiramente, a destruição do muro de Berlim e o subsequente fim abrupto da ordem da Guerra Fria, e, em segundo lugar, a destruição dos prédios do World Trade Center em 11 de setembro de 2001.

O primeiro ato de destruição foi recheado de luminosas esperanças, enquanto o que se seguiu a ele foi uma tragédia esmagadora. A convicção que se disseminou amplamente, no primeiro caso, de que “o mundo será melhor do que nunca” foi totalmente despedaçada pelo desastre de 11/9.

Esses dois atos de destruição, que tiveram um papel em um dos lados do ponto de virada do milênio com impulsos tão vastamente diferentes em cada caso, parecem ter se combinado em um único par que transformou fortemente nossa mentalidade.

Nos últimos 30 anos, escrevi ficção de várias formas, desde contos até romances longos. A história sempre foi um dos conceitos humanos mais fundamentais. Embora cada história seja única, funciona majoritariamente como algo que pode ser compartilhado e trocado com outras pessoas. Isto é uma das coisas que dão significado a uma história. As histórias mudam de forma livremente ao inalar o ar de cada nova era. Primordialmente um meio de transmissão cultural, as histórias são altamente variáveis quando se trata do modo de apresentação que empregam. Como designers de moda habilidosos, nós, romancistas, vestimos as histórias à medida que mudam de forma dia após dia, em palavras adequadas a suas figuras.

Olhando de uma perspectiva profissional, pareceria que a interface entre nós e as histórias com que deparamos passou por uma mudança maior que nunca em algum ponto quando o mundo cruzou (ou começou a cruzar) o umbral do milênio. Se isso foi uma mudança para o bem ou uma mudança menos bem-vinda, não estou em posição de julgar. Tudo que eu posso dizer é que provavelmente não conseguiremos voltar para onde começamos.

Falando por mim, um dos motivos por que sinto isso com tanta força é o fato de que a ficção que eu escrevo está, ela mesma, passando por uma transformação perceptível. As histórias dentro de mim estão mudando de forma constantemente ao inalar a nova atmosfera. Posso sentir, claramente, o movimento acontecendo dentro do meu corpo. Também acontecendo ao mesmo tempo, eu vejo, está uma mudança substancial na forma como os leitores estão recebendo a ficção que eu escrevo.

Houve uma mudança especialmente notável na postura dos leitores europeus e americanos. Até agora, meus romances podiam ser vistos em termos do século 20, ou seja, entrando em suas mentes através de vertentes como “pós-modernismo” ou “realismo mágico” ou “orientalismo”; mas, mais ou menos na época em que as pessoas receberam o novo século, gradualmente começaram a remover o arcabouço dos tais “ismos” e aceitar os mundos das minhas histórias de maneira mais próxima ao que são. Eu tinha uma forte sensação dessa mudança cada vez que visitava a Europa e a América. Parecia que as pessoas estavam aceitando minhas histórias integralmente – histórias que são caóticas, em muitos casos, às vezes falta um senso de lógica, e nas quais a composição da realidade foi repaginada. Mais do que analisar o caos dentro das minhas histórias, as pessoas parecem ter começado a conceber um novo interesse na própria tarefa de como melhor assimilá-las.

Em contraste, os leitores em geral nos países asiáticos nunca tiveram nenhuma necessidade de uma vertente da teoria literária quando liam minha ficção. A maioria dos asiáticos que se dispunham a ler minhas obras aparentemente aceitavam as histórias que eu escrevia como relativamente “naturais” desde o início. Primeiro vinha a aceitação, e depois (se necessário), vinha a análise. Na maioria dos casos no ocidente, no entanto, com algumas variações, a categorização lógica vinha antes da aceitação. Tais diferenças entre Oriente e Ocidente, no entanto, parecem estar desaparecendo com o passar dos anos, já que um influencia o outro.

Se eu tivesse que fixar um rótulo no processo pelo qual o mundo vem passando nos últimos anos, seria “realinhamento”.

Um realinhamento político e econômico começou após o fim da Guerra Fria. Não é preciso dizer muito sobre o realinhamento na área de tecnologia de informação, com seu impressionante desmantelamento e estabelecimento de sistemas em escala global. No oscilante meio de tais processos, obviamente, seria impossível que só a literatura abrisse mão de um tal realinhamento e evitasse a mudança sistemática.

Uma nítida dificuldade trazida por um processo tão abrangente de realinhamento é a perda – ainda que temporária – de eixos coordenados para formar os padrões de avaliação. Tais eixos estavam presentes até agora, funcionando como bases confiáveis sobre as quais medimos o valor das coisas. Eles se sentavam à cabeceira da mesa como chefes de família de valores, decidindo o que estava em conformidade e o que não estava. Agora despertamos e descobrimos que não somente o chefe do lar, mas a própria mesa, desapareceu. Tudo à nossa volta, aparentemente, as coisas foram – ou estão sendo – tragadas pelo caos.

Quando ouço a palavra “caos”, automaticamente me vêm à mente as cenas de 11/9 – aquelas imagens chocantes que foram mostradas um milhão de vezes na televisão: Os dois jatos jumbos mergulhando nas paredes de vidro das torres gêmeas, as próprias torres se despedaçando sem deixar rastro, cenas que continuariam inacreditáveis mesmo depois de serem vistas um milhão e uma vezes. O enredo que se sucedeu com perfeição milagrosa – uma perfeição que atingiu um nível de quase surrealidade. Se eu posso dizer isso sem medo de ser mal entendido, as cenas parecem até feitas com gráficos de computador para um filme de catástrofe de Hollywood.

Com frequência nos perguntamos como teria sido se 11/9 nunca tivesse acontecido – ou pelo menos se o plano não tivesse tido um sucesso tão perfeito. Então o mundo seria muito diferente do que é agora. Os Estados Unidos poderia ter tido um presidente diferente (uma grande possibilidade), e as guerras do Iraque e do Afeganistão poderiam nunca ter acontecido (uma possibilidade ainda maior).

Vamos chamar o mundo que realmente temos hoje de Realidade A e o mundo que poderíamos ter tido se o 11/9 nunca tivesse ocorrido de Realidade B. Não há como não perceber que o mundo da Realidade B parece ser mais real e mais racional que o mundo da Realidade A. Em outras palavras, estamos vivendo em um mundo que tem um nível ainda mais baixo de realidade que o mundo irreal. De que poderíamos chamar isso, se não de “caos”?

Que tipo de significado a ficção pode ter em uma era como esta? A que tipo de propósito pode servir? Em uma era onde a realidade é insuficientemente irreal, quanto de realidade pode possuir uma história de ficção?

Certamente, este é o problema que nós, romancistas, enfrentamos, a pergunta que nos deram. O momento em nossas mentes atravessou o umbral do novo século, e também atravessamos o umbral da realidade de uma vez por todas. Não tínhamos alternativa senão fazer a travessia, finalmente, e ao fazermos isso, nossas histórias estão sendo forçadas a mudar suas estruturas. Os romances e as histórias que escrevemos seguramente se tornarão cada vez mais diferentes no caráter e na sensação daqueles que vieram antes, da mesma forma que a ficção do século 20 se diferencia de forma nítida e clara da ficção do século 19.

O objetivo apropriado de uma história não é julgar o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau. Mais importante é que determinemos se, dentro de nós, os elementos variáveis e os elementos tradicionais estão avançando em harmonia uns com os outros, que determinemos se as histórias individuais e as histórias comuns dentro de nós estão unidas na raiz.

Em outras palavras, o papel de uma história é manter a sanidade da ponte espiritual que foi construída entre o passado e o futuro. Novas diretrizes e morais emergem naturalmente de tal empreitada. Para que isso aconteça, primeiramente devemos respirar profundamente o ar da realidade, o ar das coisas como elas são, e devemos encarar, generosos e sem preconceito, a forma como as histórias estão mudando dentro de nós. Devemos cunhar novas palavras em sintonia com a respiração daquela mudança.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a ficção (a história) está passando atualmente por um severo teste, ela traz consigo uma oportunidade sem precedentes. É claro que à ficção sempre foram atribuídas uma responsabilidade e perguntas com as quais lidar em todas as épocas, mas certamente a responsabilidade e as perguntas agora são especialmente grandes. A história tem uma função que pode ser desempenhada por si própria, que é “transformar tudo em uma história”. Transformar as coisas e os eventos à nossa volta na metáfora da forma da história e sugerir a verdadeira natureza da situação no dinamismo dessa substituição: Essa é a função mais importante da história.

Em meu romance mais recente, “1Q84”, descrevo não o futuro próximo de George Orwell, mas o oposto – o passado próximo – de 1984. E se houvesse um 1984 diferente, não o 1984 original que conhecemos, mas um outro 1984, transformado? E se de repente fôssemos lançados em um mundo assim? Haveria, claro, uma busca às cegas por uma nova realidade.

No vazio entre a Realidade A e a Realidade B, na inversão das realidades, até onde poderíamos preservar nossos valores dados, e, ao mesmo tempo, que tipo de novas morais poderíamos fazer surgir? Esse é um dos temas da obra. Passei três anos escrevendo essa história, e durante esse tempo passei esse mundo hipotético através de mim mesmo como uma simulação. O caos ainda está presente – na medida total.

Mas, depois de uma boa dose de tentativa e erro, tenho um forte sentido de que finalmente estou captando isso em termos de história. Talvez a solução comece por suavemente aceitar o caos não como alguma coisa que “não deveria estar ali”, para ser rejeitado fundamentalmente no princípio, mas como algo que “está ali como fato real”.

Posso ser otimista demais. Mas, como contador de histórias, como um piloto humilde e cheio de esperança da mente e espírito, não há como não me sentir desta maneira – de que o mundo, também, depois de uma boa dose de tentativa e erro, certamente captará uma nova confiança de que está passando por isso, de que o mundo descobrirá, sem dúvida, algumas pistas que sugiram uma solução, porque, afinal, tanto o mundo como a história já cruzaram o umbral de muitos séculos e passaram muitos marcos para sobreviver aos dias atuais.

Haruki Murakami está entre os mais prolíficos e aclamados escritores de ficção e não-ficção do Japão. Seu romance mais recente é “1Q84”, que em japonês se pronuncia da mesma forma que “1984”.