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Um ano após a morte de Néstor Kirchner, Argentina vive clima de continuidade com Cristina

Andréia Martins

Do UOL Notícias<br>Em São Paulo

27/10/2011 07h59

Há um ano, a notícia da morte de Néstor Kirchner, ex-presidente da Argentina, surpreendeu o país. Aos 60 anos, ele estava no auge de sua carreira política, auxiliava a administração da mulher, Cristina Kirchner, então em seu primeiro mandato, e preparava seu retorno triunfal para 2012. Não houve tempo. Em 27 de outubro de 2010, um infarto acabou com as aspirações de Néstor de reassumir o poder e abriu uma série de dúvidas sobre o cenário político do país.

Passado um ano da morte de Kirchner, as dúvidas deram lugar à continuidade assegurada pela gestão de Cristina. Esta é a análise feita por especialistas ouvidos pelo UOL Notícias.

"Em termos políticos, hoje vemos que a Argentina não perdeu muito com a morte de Néstor já que Cristina está dando continuidade, em todos os sentidos, à política e à estratégia do ex-presidente. As formas de governar de ambos se identificam plenamente", diz o professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília) Amado Luiz Cervo. Para o historiador, pontos chaves da administração de Néstor estão presentes no atual governo, como dedicação à reindustrialização do pais. "Essa continuidade permite que pouca coisa seja observada de diferente com relação à era de Néstor".

"A morte de Néstor já ficou no passado", afirma o professor de História Contemporânea e América Latina da USP (Universidade de São Paulo) Osvaldo Coggiola. "É claro que se estivesse vivo ele teria disputado as eleições deste ano, mas talvez tenha ajudado a levar mais votos a Cristina morto, já que o fator morte teve um peso na conquista de Cristina", diz o argentino, que destaca um feito até então inédito do casal 'K': "Considerando que eles são como se fossem uma única pessoa, conseguiram três mandatos consecutivos, algo até então inédito na política argentina".

Viúva popular

A morte de Néstor teve um efeito extremamente positivo na liderança de Cristina Kirchner, muitas vezes colocada em cheque. Tanto que a presidente passou a também usar seu sobrenome de solteira, imprimindo mais a sua personalidade: Cristina Fernández de Kirchner. Além disso, a frase estampada em faixas e cartazes pelas ruas do país no dia da morte de Néstor, “Força Cristina”, acabou virando o mote de sua campanha para reeleição - obtida com 54% dos votos.

Néstor não foi esquecido nos discursos da mandatária argentina durante a campanha presidencial. Mas agora, reeleita, Cristina quer sair da sombra do marido morto e colocar a sua marca no país. Nessa tentativa, a presidente conquistou um eleitorado que não era partidário do kirchnerismo, como é o caso do economista argentino Bruno Chmelik, 30, que prefere o estilo de Cristina em comparação ao do ex-marido da atual presidente.

"Pessoalmente prefiro Cristina, ainda que entenda que tenha sido um trabalho em equipe, e sem a primeira presidência de Néstor, Cristina não poderia ter feito nada. Mas acho que ela é menos ‘política’, menos disposta a negociar o inegociável", diz. "Tenho 30 anos e pela primeira vez estou orgulhoso de nossa presidente".

Para Chmelik, três pontos fundamentais da política de Néstor no país foram os direitos humanos, anulando as chamadas leis de impunidade aos ditadores, a restruturação e o pagamento da dívida externa. "Outro ponto forte, na minha opinião, foi a nova visão que ele trouxe, fortalecendo muito mais o bloco sulamericano através do Mercosul e da Unasul [Néstor era diretor da Unsaul quando morreu], fazendo de Brasil e Venezuela seus principais aliados estratégicos".

Mas nem todos guardam boas lembranças de Néstor.  “Se o peronismo fosse mesmo um bom modelo, outros países já o teriam adotado. O lema do peronismo é ‘dar ao povo, mas não a todo o povo’. Eles dão dinheiro a uma parte do povo, a quem interessa, e a educação a economia ficam em segundo plano”, diz o taxista Graff Mario Rios, argentino de Chaco, no norte do país. Sua maior crítica ao kirchnerismo é manter vivo um sistema que, em sua opinião, não permite que o país alcance a estabilidade. “Essa continuidade vem de Néstor. Só os argentinos não percebem que estão presos ao passado”.

Memória: ‘Não teremos Santo Néstor’

Como já é natural na Argentina, a idolatria aos líderes populares mortos é algo forte entre os portenhos, veja o exemplo de Evita, Perón, San Martín, entre outros.

Sob controle de Cristina Kirchner, o governo quer deixar claro que não esqueceu a figura de Néstor. Além do mausoléu construído em Rio Gallegos, capital da província de Santa Cruz, que será aberto nesta quinta-feira (27), também será inaugurada uma estátua de bronze do ex-líder, na Praça do Congresso, em Buenos Aires, e será realizada uma vigília na Praça de Maio, também na capital, até o horário em que a morte de Néstor foi divulgada pela imprensa, há um ano.

Na semana que vem, o Museu do Bicentenário da Casa Rosada inaugura uma exposição de fotos em homenagem a Néstor Kirchner, que terá ainda a exibição de um filme sobre a militância "K" e o lançamento do livro Néstor Por Todos.

No entanto, comparado a mitos como Perón e Evita, Néstor será lembrado de forma diferente.  "Não existe uma mitologia em torno de Néstor como acontece com Perón, por exemplo, que décadas após sua morte ainda sustenta o nome de um movimento", diz Coggiola. 

“Néstor morreu no auge de sua carreira política”, acrescenta o historiador argentino Pablo Vázquez. “A questão da sacralidade na política tem sido um ponto importante no país, mas creio que ele será lembrado pelo seu papel de líder. Não teremos nada parecido com um santo Néstor”.