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"Fiz coisas mais importantes na vida", diz militar que capturou Che Guevara

O então capitão Gary Prado prendeu Che Guevara no interior da Bolívia em 8 de outubro de 1967 - Marcel Vincenti/UOL
O então capitão Gary Prado prendeu Che Guevara no interior da Bolívia em 8 de outubro de 1967 Imagem: Marcel Vincenti/UOL

Marcel Vincenti

Do UOL, em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

09/01/2014 07h20

Na madrugada do dia 8 de outubro de 1967, ao receber a denúncia de que guerrilheiros andavam pela região da Quebrada del Yuro, o capitão da 8ª divisão do Exército boliviano, Gary Prado, não pensou duas vezes: arregimentou rapidamente 50 de seus melhores homens e os conduziu até o topo do cânion no qual, de fato, encontravam-se Che Guevara e parte de seu grupo armado, que havia quase um ano tentavam implantar um foco revolucionário no coração da América do Sul.

Após intensa troca de tiros, Che foi preso e conduzido por Prado ao vilarejo de La Higuera, onde foi executado a mando do então presidente da Bolívia, René Barrientos. 

Hoje com 74 anos, o agora general reformado ainda parece uma pessoa de prontidão para o combate – seja ele feito com armas ou palavras. Preso há mais de 30 anos a uma cadeira de rodas, devido a um projétil que destruiu sua espinha durante um evento militar (em um acidente nunca esclarecido), ele mostra-se um homem frio e de consciência tranquila: descreve com humor a ocasião em que, em 1968, quase foi assassinado por um grupo esquerdista no Rio de Janeiro (que queria vingar o guerrilheiro argentino) e rejeita com um sorriso irônico a "maldição do Che", à qual é atribuída a morte violenta de vários militares envolvidos na captura do revolucionário.

A mesma atitude é adotada na hora de explicar a atual acusação que pesa sobre ele: a de participar de um complô em 2009, organizado por membros da elite de Santa Cruz (que supostamente buscavam separar a província da Bolívia), para matar o atual presidente boliviano, Evo Morales. "Não tive nada a ver com isso, e o governo fica me chamando de terrorista". 

Prado exibe diversas condecorações do Exército boliviano e já foi embaixador do país no México e na Inglaterra. Na parede de sua casa na cidade de Santa Cruz de la Sierra, aparece em uma foto dando a mão para o papa João Paulo 2º.  “Fiz coisas mais importantes na vida do que capturar Che Guevara”, afirma ele. 

Qual foi a reação de Che Guevara no momento em que ele se viu capturado?
Eu tenho duas imagens do Che neste momento. A primeira é a de um homem acabado, que se rendia. Muita gente me pergunta: o que você sentiu quando se viu na frente do Che? E eu digo: me deu pena. Era um homem em péssimo estado físico, com a roupa suja, e seu estado de ânimo não era melhor. Ele estava totalmente deprimido. Nas horas em que combateu nossos soldados, Guevara viu morrer vários de seus companheiros e, quando já estava sob nosso controle, me disse: "isso está acabado".  Porém, curiosamente, ao perceber que o tratávamos bem, seu estado de ânimo melhorou. Foi nesse momento em que ele começou a se preocupar com seu futuro e a perguntar o que iríamos fazer com ele. Nesse momento não havia nenhuma instrução do que não deveríamos fazer com os prisioneiros e minha resposta foi simples: você será julgado em Santa Cruz de la Sierra, que é a sede do comando da divisão que o capturou. Ele provavelmente imaginou que seu julgamento se transformaria em uma causa célebre. São essas as duas imagens que tenho dele naqueles instantes: o homem deprimido logo após a captura e uma pessoa mais otimista em La Higuera.  

Como foi a última vez em que o senhor viu Che Guevara vivo?
Foi manhã do dia 9 de outubro, quando chegou a La Higuera de helicóptero o comandante da minha divisão, o coronel Joaquín Zenteno. Eu lhe entreguei meus dois prisioneiros [Che Chevara e o boliviano Simeón “Willy” Sanabria] e os materiais capturados na operação. Zenteno me pediu para levá-lo até a zona em que havíamos prendido os guerrilheiros. Após observar a área, ele me disse que tinha que falar com La Paz e voltou a La Higuera. Eu fiquei perto da Quebrada del Yuro, pois tinha que fazer uma varredura para acabar com os guerrilheiros que ainda restavam na zona. Matamos mais dois guerrilheiros em um combate e então regressamos a La Higuera. Quando chegamos ao vilarejo, um major veio até mim: "o Che foi executado. Ordens de La Paz". Durante todo o dia, havia um helicóptero transportando corpos de soldados e guerrilheiros entre La Higuera e Vallegrande, e a ordem do coronel Zenteno era que o corpo de Che fosse levado na última viagem. O cadáver dele já estava sendo amarrado aos patins do helicóptero. Eu me aproximei do corpo e amarrei meu lenço em volta de sua mandíbula, para que seu rosto não deformasse. Ele ficou parecendo com uma pessoa com dor de dente. Essa é a última imagem que eu tenho dele, o momento em que ele partia no helicóptero.

O senhor acredita na “maldição do Che”, que teria ocasionado a morte de várias pessoas envolvidas em sua captura [como o coronel Joaquín Zenteno, assassinado em Paris em 1976, e o próprio presidente René Barrientos, morto em um acidente aéreo em 1969]?
[Sorrindo e balançando a cabeça negativamente] Isso é um disparate.

  • Arquivo pessoal/Gary Prado

    Gary Prado em 1967, durante a campanha que capturou Che Guevara na selva boliviana

E o que o exatamente aconteceu no Rio de Janeiro em 1968, quando um grupo armado de esquerda assassinou um militar alemão pensando que era o senhor?
Em 1967, eu havia recebido uma bolsa para fazer um curso na Escola de Estado Maior do Brasil, na Praia Vermelha. Eu vivia em Copacabana e estudava com oficiais de vários países, como argentinos, paraguaios, portugueses, italianos. E havia um alemão, que vivia perto de mim. Um dia, vestidos como civis, pegamos o ônibus juntos. Eu desci primeiro e ele desceu umas duas quadras depois. O que sabemos é que, no momento em que ele se aproximava de sua casa, dois homens apareceram entre os carros e dispararam diversos tiros contra ele. Quando souberam da história, os oficiais da Escola Maior foram até minha casa para me levar para um lugar seguro. Uma das possibilidades levantadas foi a de que os assassinos o tinham confundido comigo, que o atentado deveria ser feito contra mim. Mas isso nunca foi comprovado e minha vida continuou relativamente normal. De qualquer modo, eu tive uma vantagem, pois comecei a morar dentro do edifício militar da Praia Vermelha, junto com oficiais brasileiros, o que me fez poupar pelo menos três anos de aluguel no Brasil. Recentemente, em 1999, um colega me ligou dizendo: "O 'Fantástico', da Rede Globo, está mostrando uma reportagem sobre as pessoas que tentaram te matar e haviam se enganado". Ele me mandou uma gravação e lá estavam os caras que tentaram me matar, que supostamente pertenciam a uma célula comunista.

Hoje o senhor é um general reformado com uma longa carreira no Exército e no governo boliviano. O senhor gosta de ser recordado principalmente como o homem que capturou Che Guevara?
Na minha vida, fiz coisas mais importantes do que capturar Che. Mas isso é algo com que eu tenho que me acostumar a viver, certo? Neste escritório [apontando para dezenas de retratos nas paredes], sempre ouço a mesma pergunta: ‘mas como você não tem nenhum foto do Che aqui?’. E a minha resposta é a mesma: por que vou ter uma foto do Che aqui? Fiz coisas mais importantes na minha vida. Mas tenho muitos livros publicados sobre ele, como referência.

Como seriam a Bolívia e a América do Sul caso a guerrilha de Guevara tivesse tido êxito?
Um governo dessa natureza não teria sobrevivido na Bolívia, que não tem saída para o mar e na época estava rodeada de ditaduras militares [de direita]. É impossível pensar que uma guerrilha de esquerda conseguiria tomar o poder na Bolívia. Nossas fronteiras e espaço aéreo seriam fechados, ninguém mais iria entrar aqui. Era uma utopia, um sonho complicado. Por outro lado, o que Cuba fez com o Che foi uma traição: o abandonaram. O governo de Fidel Castro o mandou para a Bolívia para se livrar dele. Em 1965, Fidel leu publicamente a carta em que Che se despedia de Cuba e renunciava a seus cargos no governo da ilha. Naquele momento, Che estava conduzindo uma guerrilha na República Democrática do Congo e li [em um relato escrito pelo guerrilheiro cubano Daniel Alarcón Ramírez, que acompanhava Che na empreitada], que Guevara ficou furioso ao saber da publicação de sua carta. Ele queria que essa carta só fosse publicada caso ele fosse morto no Congo, para que Cuba fosse isentada de qualquer responsabilidade de intervenção no país africano. Isso fechou seu caminho de volta a Cuba, pois ele havia renunciado a tudo. E a mesma coisa aconteceu quando ele chegou a Bolívia: ele teve pouquíssimo suporte de Cuba para conduzir sua guerrilha.     

  • Arquivo pessoal/Gary Prado

    Che Guevara sob custódia no vilarejo de La Higuera, momentos antes de ser executado

Escolher o Sudeste da Bolívia como área de operação da guerrilha foi um erro?
A população dessa região já era dona de suas terras e nunca havia sido oprimida como o foram os mineiros bolivianos, por exemplo, que se encontram em outras regiões da Bolívia. Além disso, é uma área que concentrava muitos ex-combatentes da Guerra do Chaco [conflito territorial sangrento ocorrido entre Bolívia e Paraguai de 1932 a 1935], todos extremamente nacionalistas e zelosos de seu território. O Che não iria conseguir nunca recrutar essa gente para sua guerrilha. Além disso, a partir de 1964, o presidente René Barrientos conduzia um programa chamado “Ação Cívica”, em que o Exército fazia diversos trabalhos sociais para a gente do campo. Os camponeses gostavam do Exército e viraram delatores do movimento guerrilheiro.     

Matar Che Guevara foi a melhor decisão?
Nesse momento [após ele ser capturado] não me pareceu a melhor decisão. Mas foi algo compreensível. Em 1976, o general Alfredo Ovando [que comandava o Exército da Bolívia em 1967] me contou como foi a reunião com o presidente Barrientos que decidiu o destino de Guevara. Eles consideraram um julgamento, mas logo descartaram a ideia, pois seria um show midiático. Além disso, em um julgamento, Guevara teria que ser condenado a pelo menos a 30 anos de prisão, pois ele tinha invadido a Bolívia e matado diversos soldados bolivianos. E onde prendê-lo? Na época, as cadeias na Bolívia mal tinham paredes, só ficava preso quem queria. Seguramente iríamos ter que lidar com diversas tentativas para libertá-lo. Seria um fator de agitação permanente. Assim que a conclusão do alto poder foi a seguinte: era necessário executá-lo.

Mas isso também criou um mártir...
O procedimento da execução foi errado. Nós [diversos oficiais presentes em La Higuera] não fomos consultados sobre qual era a melhor forma de sair daquele impasse. Não tínhamos ordem para matar Che no momento em que o capturássemos e diversos camponeses o viram saindo vivo da Quebrada del Yuro e caminhando em direção a La Higuera. O governo quis informar que Che havia sido morto em uma troca de tiros, mas todos já sabiam que isso não tinha acontecido. Ter sido capturado em combate e morto em uma escolinha em um lugar isolado da Bolívia contribuiu para a criação do mito em torno dele.