Com o sonho europeu, africanos são vendidos em mercado de escravos na Líbia
Confiando em atravessadores que prometem levá-los à Europa, viagem de muitos africanos acaba na Líbia, onde são vendidos como escravos, torturados e até mortos
"Oitocentos dinares! Mil dinares! Mil e cem dinares! Quem dá mais?" Por 1.200 dinares líbios – cerca de R$ 2,6 mil reais – o negócio é finalmente fechado. Não é um carro, por exemplo, que está sendo vendido, e sim um grupo de jovens assustados provenientes da África Subsaariana.
As imagens do leilão foram gravadas neste ano por um smartphone num mercado na Líbia, e chegaram à emissora norte-americana CNN, que investigou o fato. Em vários locais no interior do país e na costa do Mediterrâneo, os jornalistas encontraram verdadeiros mercados de escravos.
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As cenas, agora divulgadas mundo afora, expõem o que ONGs da região já denunciavam há meses: a situação de milhares de migrantes africanos na Líbia, estuprados, torturados e escravizados.
As imagens da CNN se propagaram rapidamente nas redes sociais e provocaram uma onda de indignação mundial na última semana.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, se disse horrorizado, o presidente da União Africana (UA), Alpha Condé, indignado e a União Europeia, enojada.
"Hipocrisia", denuncia o senegalês Hamidou Anne, analista do think tank África de las Ideas, já que, "com exceção do cidadão comum, todo mundo sabia, os governantes, as organizações internacionais, os líderes políticos" sobre a situação na Líbia.
"A tomada de refém, a violência, a tortura, os estupros são normais na Líbia, e da escravidão já se fala faz tempo", insiste Alioune Tine, diretor para África ocidental e central na Anistia Internacional, com sede em Dacar.
A Líbia, país imerso no caos, se tornou um importante ponto de passagem para os migrantes que tentam chegar à Europa pelo Mediterrâneo. Muitos deles são vítimas dos traficantes de seres humanos.
"Na Líbia, os negros não têm nenhum direito", disse em setembro Karamo Keita, um jovem da Gâmbia de 27 anos, reenviado a seu país.
Fomos levados a várias fazendas onde nosso carcereiro líbio nos vendia como escravos."
"A vida na Líbia era um inferno", disse Souleymane, um jovem migrante da Costa do Marfim, em conversa com a agência de notícias DW.
Ele passou meses detido no país norte-africano. Somente por um acaso, Souleymane conseguiu retornar a seu país com o apoio da Organização Internacional para as Migrações: "Vivia em constante medo de ser apanhado por uma milícia e acabar sendo vendido como escravo."
O tráfico de seres humanos na região se intensificou nos últimos anos, apontou Othman Belbeisi, chefe da missão da ONU na Líbia.
Segundo Belbeisi, os migrantes passam até três meses detidos e explorados por milícias em calabouços na Líbia: "O problema é que a maioria dos migrantes que fogem por motivos econômicos não possui nenhum documento. Eles entram na Líbia através de fronteiras não oficiais e se tornam completamente dependentes dos atravessadores. E eles então são muitas vezes sequestrados – e se o dinheiro do resgate não for pago, são vendidos, torturados ou até mortos."
Desde o mês de abril, a Organização Internacional para as Migrações informava sobre a existência de "mercados de escravos" na Líbia. "Se transformam em mercadorias para comprar, vender e jogar fora quando já não valem mais nada", comentou Leonard Doyle, porta-voz da OIM em Genebra.
'Torturas e extorsões'
Enquanto as rotas legais para a Europa não se tornarem mais acessíveis, a motivação de jovens africanos para se arriscar na jornada clandestina permanece.
A presidente do Médicos Sem Fronteiras, Joanne Liu, também denunciou em setembro, em uma carta aberta aos governos europeus, "uma empresa próspera para sequestro, tortura e extorsão" na Líbia.
Em seus esforços por conter o fluxo (migratório), os governos europeus estarão dispostos a assumir o preço do estupro, da tortura e da escravidão? Não podemos dizer que não sabíamos disso."
Joanne Liu, presidente do Médicos sem Fronteiras
Segundo dados da OIM, neste ano, mais de 160 mil migrantes chegaram à Europa através do Mediterrâneo. Estimativas de funcionários da ONU na Líbia apontam que outras centenas de milhares aguardam a travessia para a Europa.
Na semana passada, o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad Al Hussein, denunciou a deterioração das condições de detenção de migrantes no país, qualificando de desumana a política da UE que consiste "em ajudar os guarda-costeiros líbios a interceptar e reenviar os migrantes".
Uma acusação rejeitada por Bruxelas, que destaca seus esforços para "salvar vidas" no mar e "facilitar o acesso da OIM e da Agência da ONU para os Refugiados (Acnur) aos centros de detenção na Líbia para que possa aumentar o nível de assistência e organizar regressos voluntários".
Para Alioune Tine, a Europa "tem uma responsabilidade fundamental no desastre atual, mas não é a única". "Os países africanos não fazem nada para reter os jovens, para dar trabalho a eles. Não têm política de migração", lamenta.
Protestos
Ao longo da semana, foram feitos protestos contra a escravidão de migrantes em diversos lugares do mundo, como Marrocos, França, Itália e Senegal.
Políticos especialmente na África Ocidental, de onde vem a maioria dos migrantes, demonstraram indignação e pediram explicações da Líbia.
Mahamadou Issoufou, presidente do Níger, criticou duramente a situação na Líbia. Exigindo que a Corte Internacional de Justiça se ocupe do comércio escravagista no país do Norte da África.
O caso deve fazer parte da agenda da próxima cúpula da União Africana, que se realizará nos dias 29 e 30 de novembro na Costa do Marfim.
40 milhões de escravos no mundo
A venda de migrantes na Líbia não é um caso isolado: mais de 40 milhões de pessoas no mundo vivem atualmente em regime de escravidão, segundo um estudo conduzido em 2016.
A noção de escravidão moderna engloba o trabalho forçado, que afeta 25 milhões de pessoas, e o casamento forçado (15 milhões). Mas esses números são considerados subestimados, ressalta a Organização Mundial do Trabalho, a Organização Internacional para as Migrações e o grupo de defesa dos direitos humanos Walk free Foundation que realizaram a estimativa em conjunto.
"Vários estudos estabeleceram claramente ligações entre migrações e o tráfico de seres humanos", ressalta este estudo, que evoca as rotas percorridas pelos migrantes.
Das 25 milhões, cerca de 5 milhões de pessoas são forçadas a se prostituir.
(Com agências internacionais)
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