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Papa ignorou carta de vítima com detalhes de abusos sexuais ao pedir provas contra bispo chileno

Bispo Juan Barros, que foi defendido pelo papa Francisco apesar das acusações feitas em carta por uma das vítimas - Carlos Gutierrez/Reuters
Bispo Juan Barros, que foi defendido pelo papa Francisco apesar das acusações feitas em carta por uma das vítimas Imagem: Carlos Gutierrez/Reuters

Nicole Winfield e Eva Vergara, da Associated Press

Na Cidade do Vaticano

05/02/2018 16h39

O papa Francisco recebeu a carta de uma vítima em 2015 que relatava, com detalhes explícitos, como um padre chileno havia abusado sexualmente dela e como outros membros do clero chileno ignoraram o fato. A correspondência contradiz o pontífice, que, recentemente, afirmou que nenhuma vítima havia se apresentado para denunciar o acobertamento.

A informação foi confirmada para a agência Associated Press pelo autor da carta e por membros da própria comissão de investigação de abusos sexuais do papa Francisco.

O fato de o papa Francisco ter recebido a carta de oito páginas, à qual a AP teve acesso, contradiz sua insistência de que ele teria "tolerância zero" por casos de abuso sexual e acobertamentos. Isso também coloca em questão sua afirmada empatia para com sobreviventes de abusos, agravando a mais séria crise de seus cinco anos de papado.

O escândalo estourou no mês passado, quando a viagem do papa Francisco pela América do Sul foi realizada em meio a protestos contra a defesa que ele fez do bispo Juan Barros, acusado por vítimas de acobertar os abusos cometidos pelo reverendo Fernando Karadima. Durante sua viagem, o papa Francisco deu pouca importância às acusações contra Barros, classificando-as insensivelmente como "calúnias", e aparentemente ignorando que vítimas o haviam colocado na cena dos crimes de Karadima.

No voo de volta para casa, ao ser confrontado por um repórter da AP, o papa disse: "Vocês, com boa intenção, me dizem que há vítimas, mas eu não vi nenhuma, porque elas não se apresentaram".

Mas membros da Comissão para a Proteção de Menores do papa dizem que, em abril de 2015, eles enviaram uma delegação até Roma especificamente para entregar em mãos para o papa uma carta sobre Barros. A carta de Juan Carlos Cruz detalhava os abusos, beijos e carícias que diz ter sofrido nas mãos de Karadima, e que, segundo ele, Barros e outros teriam testemunhado e ignorado.

Quatro membros da comissão se encontraram com o principal assessor do papa Francisco para casos de abuso, o cardeal Sean O’Malley. Eles explicaram suas objeções em relação à nomeação recente de Barros como bispo no sul do Chile por parte do papa e lhe deram a carta a ser entregue para o papa Francisco.

"Quando demos a ele (O’Malley) a carta a ser entregue para o papa, ele nos garantiu que a encaminharia ao papa e falaria sobre nossas preocupações", contou à AP Marie Collins, membro da comissão na época. "E posteriormente ele nos garantiu que isso havia sido feito".

Cruz, que hoje vive e trabalha na Filadélfia, ouviu o mesmo mais tarde naquele ano. "O cardeal O’Malley me ligou após a visita do papa aqui na Filadélfia e me disse, entre outras coisas, que ele havia entregue a carta ao papa —em mãos", ele disse em uma entrevista em sua casa, no domingo.

Marie Collins entrega carta de  Juan Carlos Cruz ao cardeal Sean O'Malley em 2015 - Catherine Bonnet via AP - Catherine Bonnet via AP
Marie Collins entrega carta de Juan Carlos Cruz ao cardeal Sean O'Malley em 2015
Imagem: Catherine Bonnet via AP


Nem o Vaticano, nem O’Malley responderam a diversos pedidos de comentários.

Embora a cúpula de 2015 da comissão do papa Francisco tenha sido divulgada na época, o conteúdo da carta de Cruz —e uma foto de Collins entregando-a para O’Malley— não foi revelado pelos membros. Cruz forneceu a carta e Collins forneceu a foto, depois de ler uma matéria da AP que relatava que o papa Francisco havia alegado nunca ter ouvido de nenhuma das vítimas de Karadima sobre o comportamento de Barros.

O caso envolvendo Barros causou repercussões pela primeira vez em janeiro de 2015, quando o papa Francisco o nomeou bispo de Osorno, no Chile, passando por cima de objeções por parte da liderança da conferência dos bispos do Chile e de muitos padres e leigos locais. Eles aceitaram como plausível o testemunho contra Karadima, um proeminente clérigo chileno que foi penalizado pelo Vaticano em 2011 por abuso de menores. Barros era um protegido de Karadima, e, de acordo com Cruz e outras vítimas, ele testemunhou os abusos e não fez nada.

"Santíssimo Padre, escrevo-lhe esta carta porque estou cansado de lutar, de chorar e de sofrer", escreveu Cruz em espanhol, língua nativa do papa Francisco. "Nossa história é bem conhecida e não há necessidade de repeti-la, exceto para lhe contar sobre o horror de ter vivido esse abuso e como eu quis me matar".

Cruz e outros sobreviventes denunciaram durante anos o acobertamento dos crimes de Karadima, mas foram chamados de mentirosos pela direção da igreja chilena e pelo próprio embaixador do Vaticano em Santiago, que recusou suas repetidas solicitações para um encontro antes e depois que Barros foi nomeado.

Depois que os comentários do papa Francisco em apoio ao comando da igreja chilena causaram comoção no Chile, ele foi obrigado na semana passada a rever sua posição: o Vaticano anunciou que estava enviando seu mais respeitado investigador de crimes sexuais para colher o depoimento de Cruz e outros sobre Barros.

Na carta ao papa, Cruz implora para que o papa Francisco o escute e cumpra sua promessa de "tolerância zero".

"Santíssimo Padre, já é muito ruim termos sofrido tamanha dor e angústia devido aos abusos sexuais e psicológicos, mas o terrível tratamento que recebemos de nossos pastores é quase pior", ele escreveu.

Cruz detalha com termos explícitos a natureza homoerotizada do círculo de padres e rapazes em torno de Karadima, o carismático pregador cuja comunidade de El Bosque em Providencia, bairro nobre de Santiago, produziu dezenas de candidatos ao sacerdócio e cinco bispos, incluindo Barros.

Ele descreveu como Karadima beijava Barros e acariciava sua genitália, e fazia o mesmo com padres mais jovens e adolescentes, e como jovens padres e seminaristas brigavam para se sentar ao lado de Karadima à mesa para receber seus afetos.

"O mais difícil era quando estávamos no quarto de Karadima e Juan Barros —quando não estava beijando Karadima— assistia enquanto Karadima nos tocava —os menores— e nos obrigava a beijá-lo, dizendo: ‘Coloque sua boca perto da minha e ponha sua língua para fora’. Ele punha a língua dele para fora e nos beijava", Cruz contou ao papa. "Juan Barros foi testemunha todas essas vezes, não somente comigo, mas com outros também".

"Juan Barros acobertou tudo que lhe contei", disse.

Barros negou repetidamente ter testemunhado qualquer abuso ou acobertamento. "Eu nunca soube de nada, nem imaginei, a respeito dos graves abusos que esse padre cometeu contra as vítimas", ele disse recentemente à AP. "Eu nunca aprovei nem participei de tais graves e desonestos atos, e nunca fui condenado por nenhum tribunal por tais atos".

Para os fieis de Osorno que protestaram contra a escolha de Barros como seu bispo, a questão não é nem tanto algo legal que requeira provas ou evidências, uma vez que Barros era um padre jovem na época e não tinha posição de autoridade sobre Karadima. É mais pelo fato de que, se Barros não "via" o que estava acontecendo ao seu redor e não acha problemático um padre beijar e apalpar meninos, ele não deveria ser encarregado de uma diocese onde seja responsável por detectar comportamentos sexuais inapropriados, denunciá-los à política e proteger crianças de pedófilos como seu mentor.

Cruz chegou à comunidade de Karadima em 1980 quando era um adolescente vulnerável, abalado após a morte recente de seu pai. Ele conta que Karadima lhe disse que seria como um pai espiritual para ele, mas em vez disso abusou sexualmente dele.

Com base em testemunhos de Cruz e de outros ex-membros da paróquia, o Vaticano removeu Karadima do ministério em 2011 e o sentenciou a uma vida de "penitência e orações" por seus crimes. Hoje, com 87 anos de idade, ele vive em um lar para padres idosos em Santiago; ele não comentou sobre o escândalo e o abrigo não quis atender a telefonemas e visitas da imprensa.

As vítimas também deram depoimentos para promotores chilenos, que abriram uma investigação sobre Karadima depois que elas fizeram suas acusações publicamente em 2010. Promotores chilenos tiveram de retirar as acusações porque havia se passado muito tempo, mas o juiz que comandava o caso ressaltou que não foi por falta de provas.

Embora o depoimento das vítimas fosse considerado verossímil tanto pelo Vaticano quanto pelos promotores chilenos, a direção da igreja local claramente não acreditava nelas, o que pode ter influenciado o ponto de vista do papa Francisco. O cardeal Francisco Javier Errazuriz reconheceu que inicialmente não acreditou nas vítimas e arquivou uma investigação. Ele foi obrigado a reabri-la depois que as vítimas vieram a público.

Hoje ele é um dos principais cardeais assessores do papa argentino.

Quando finalmente conseguiu com que sua carta fosse parar nas mãos do papa em 2015, Cruz já havia enviado versões dela para várias outras pessoas, e tentou por meses marcar um horário para falar com o embaixador do Vaticano. O e-mail enviado para Cruz no dia 15 de dezembro de 2014 —um mês antes da nomeação de Barros— foi breve e direto ao ponto:

"A nunciatura apostólica recebeu a mensagem enviada pelo senhor por e-mail no dia 7 de dezembro ao núncio apostólico", dizia o e-mail, "e ao mesmo tempo lhe comunica que sua solicitação recebeu uma resposta contrária".

Seria possível argumentar que o papa Francisco não prestou atenção à carta de Cruz, já que ele recebe milhares de cartas todos os dias de fieis do mundo inteiro. É impossível ele conseguir ler todas, que dirá se lembrar do conteúdo anos depois. Ele poderia estar cansado e confuso após a viagem de uma semana pela América do Sul, quando contou em uma coletiva de imprensa em pleno voo que as vítimas nunca vieram a público para acusar Barros de acobertamento.

Mas essa não era uma carta qualquer, tampouco eram as circunstâncias sob as quais ela chegou até o Vaticano.

Francisco havia nomeado O’Malley, o arcebispo de Boston, como chefe de sua Comissão para Proteção de Menores com base em sua credibilidade por ter ajudado a limpar a bagunça em Boston depois que o escândalo sobre abusos sexuais nos Estados Unidos estourou ali em 2002. A comissão reuniu especialistas de fora para assessorar a igreja sobre como proteger crianças de pedófilos e prevenir abusos e acobertamentos.

Os quatro membros da comissão que estavam em um subcomitê especial dedicado aos sobreviventes haviam voado até Roma especificamente para falar com O’Malley sobre a nomeação de Barros e para entregar a carta de Cruz. Um comunicado à imprensa emitido depois da reunião do dia 12 de abril de 2015 dizia: "O cardeal O’Malley concordou em transmitir as preocupações do subcomitê ao Santo Padre".

Catherine Bonnet, uma psiquiatra infantil francesa e membro da comissão que tirou a foto de Collins entregando a carta para O’Malley, disse que os membros da comissão haviam decidido ir até Roma especificamente quando O’Malley e outros membros do grupo de nove cardeais assessores do papa estavam se reunindo, de forma que O’Malley pudesse entregá-la diretamente nas mãos do papa.

"O cardeal O’Malley nos prometeu, quando Marie lhe deu a carta de Juan Carlos, que ele a entregaria ao papa Francisco", ela disse.

O porta-voz de O’Malley em Boston direcionou os pedidos por comentários para o Vaticano. Nem a assessoria de imprensa do Vaticano, nem membros da Comissão Pontifical pela Proteção de Menores responderam a telefonemas e e-mails com pedidos de comentários.

Mas a notável resposta de O’Malley à defesa que o papa Francisco fez de Barros e à minimização das vítimas enquanto ele estava no Chile talvez possa ser entendida melhor agora.

Em uma rara crítica feita por um cardeal a um papa, O’Malley emitiu uma declaração no dia 20 de janeiro na qual dizia que as palavras do papa eram "uma fonte de grande dor para os sobreviventes de abusos sexuais", e que tais expressões tinham por efeito abandonar as vítimas e relegá-las ao "exílio do descrédito".

Um dia depois, Francisco pediu desculpas por ter exigido "provas" da má conduta de Barros, dizendo que ele só quis dizer que queria ver "evidências". Mas depois ele veio a descrever as acusações contra Barros como sendo "calúnias" e insistiu que nunca havia ouvido de nenhuma das vítimas.

Mesmo quando ouviu, durante a coletiva de imprensa aérea do dia 21 de janeiro, que as vítimas de Karadima haviam de fato colocado Barros na cena dos abusos de Karadima, o papa Francisco disse: "Ninguém se apresentou. Não forneceram nenhuma evidência para um julgamento. Tudo isso é muito vago. É algo que não pode ser aceito".

Ele continuou apoiando Barros, dizendo: "Tenho certeza de que ele é inocente", mesmo enquanto dizia que considerava o testemunho das vítimas como "evidências" em uma investigação sobre o acobertamento.

"Se alguém puder me apresentar evidências, serei o primeiro a ouvir", ele disse.

Cruz disse que ouvir essas palavras foi como um tapa na cara.

"Eu fiquei transtornado", ele disse, "e ao mesmo tempo não conseguia acreditar que alguém tão importante quanto o próprio papa pudesse mentir a respeito disso".