Grupo cuida de cães abandonados em Chernobyl e defende adoção dos animais
Quando a zona de exclusão foi criada ao redor de Chernobyl, centenas de cachorros deixados para trás pelas famílias que fugiram acabaram aprendendo a viver sozinhos. Hoje, mais de mil cães ainda vivem na área, descendentes dos animais abandonados na fuga, deixados à própria sorte. Mas um grupo de ativistas de uma ONG americana criou um sistema para vaciná-los, acompanhar a contaminação por radiação e, em um futuro próximo, até facilitar a adoção de alguns destes animais.
Em entrevista ao UOL, Lucas Hixson, que é especialista em radiação, contou que visitou a área isolada pela primeira vez em 2013 por causa de seu trabalho e ficou surpreso com a quantidade de animais no local. "Eram animais muito dóceis. Mas o governo não tinha uma boa solução para lidar com os cães, e percebemos que todos ali, humanos e animais, sem a vacinação, estavam expostos à raiva", disse.
Segundo o americano, a Ucrânia comprava vacinas antirrábicas da Rússia e, com o conflito entre os dois países, os ucranianos acabaram ficando quase sem vacinas. "Então, se um turista ou um trabalhador da região é mordido por um cão, ele não tem como tomar a vacina e não estará protegido contra a raiva humana. Seria preciso tirar a pessoa do país para tomar a vacina".
Durante a evacuação da área, em abril de 1986, as mais de 120 mil pessoas retiradas da região foram impedidas de levar seus animais durante a fuga. Muitos deles foram mortos durante os trabalhos de contenção da radiação, mas alguns sobreviveram e seus descendentes ocupam a área até hoje. Atualmente, além da visitação de turistas, cerca de 3.500 pessoas trabalham em Chernobyl. Diante disso, a proposta da ONG Clean Futures Fund é não só proteger os animais, mas principalmente tornar segura a relação entre os cães e os humanos.
"Temos que pensar na perspectiva de um trabalhador de lá. Ele vive na Ucrânia, que é um país com uma economia em crise, com muita corrupção, em um país que enfrenta um conflito armado contra a Rússia. E todo dia eles precisam levantar e ir trabalhar no local mais contaminado do mundo, que é Chernobyl. Ele vai para o trabalho e vê estes cães, e as pessoas têm esta reação natural quando veem um cachorro: elas sorriem, interagem com estes animais. Então o nosso foco é este relacionamento, permitindo que eles possam interagir com os cães sem riscos. Acho que este é um benefício grande do nosso projeto", diz Lucas.
"Além disso, esta não é uma região boa para os cães viverem. Não existe comida saudável, água limpa, o inverno é muito difícil e há construções e atividades industriais por todo lado. É ainda uma área com muitos predadores, que atacam e até comem os cães. A vida é muito dura ali, e os cães não vivem muito tempo. Mas eles têm muitos filhotes e se reproduzem muito rapidamente", afirma o americano.
Segundo Lucas, além da vacinação, a ONG trabalha também com a castração dos cães, evitando que o número de animais cresça ainda mais. "Se eles não tiverem mais filhotes, a população de cães será reduzida mais rapidamente e, com um número menor de cães, será mais fácil cuidar de todos eles", diz o voluntário. "Assim, podemos manter programas para alimentá-los, para assegurar abrigo, cuidados veterinários e, ao mesmo tempo, proteger os trabalhadores de Chernobyl, garantindo que esta relação tão especial entre os humanos e os cães de lá seja duradoura".
O objetivo da ONG não é extinguir os animais, mas reduzir a quantidade para que eles tenham qualidade de vida. "Acho que sempre existirão cães abandonados em Chernobyl. Hoje há cerca de mil cachorros, e queremos que este número seja reduzido para algo entre 200 e 300 cães. Esta quantidade seria ideal para que todos sejam cuidados de forma adequada".
Adoção no futuro
Atualmente, retirar qualquer animal de dentro da zona de exclusão é proibido, por conta das medidas de segurança contra a radiação. A ONG de Lucas está coletando dados dos animais para provar ao governo ucraniano que os cães são seguros como qualquer outro animal de estimação. "Se você os lava, dá comida e água limpas por um tempo, eles não vão representar nenhum perigo por causa do local em que nasceram. Nossa ideia é convencer o governo a permitir o resgate destes animais" para adoção, diz Lucas.
O especialista em radiação diz que a proposta é retirar os filhotes, já que são mais jovens e se adaptariam mais facilmente a uma vida como um animal de estimação. "Quando você retira um vira-lata que cresceu em um ambiente inóspito como Chernobyl, é estressante demais para qualquer animal ser socializado, para se transformar em um animal de estimação. Não é uma boa ideia resgatar um cão adulto que viveu a vida toda ali, em meio às florestas e escombros de uma cidade abandonada. Ele pode ter um comportamento mais agressivo, pode ser difícil de treiná-lo. Por isso a ideia é resgatar os filhotes e garantir a melhor qualidade de vida dos adultos que permanecerem na área", afirma.
A ONG recebe centenas de pedidos de adoção por ano. A ideia de Lucas é conseguir a liberação para a adoção "daqui a um ano ou dois".
Uma equipe ucraniana faz visitas regulares ao local, e a ONG tem um programa anual que leva cerca de 100 voluntários para passar quatro semanas na zona de exclusão atendendo os animais. Veterinários fazem os atendimentos em casos de emergências médicas dos cães, e a organização trabalha em parceria com empresas e universidades. Os responsáveis pela administração da área de exclusão liberam espaços para que sejam montados os hospitais para atendimentos.
"Temos uma equipe de proteção contra radiação, que constantemente monitora os níveis de contaminação dos cães e de tudo o que entra nas instalações em que prestamos os atendimentos. Para as pessoas que entram nesta área, é preciso assegurar que ninguém vá ingerir nada contaminado de forma alguma. Você não está em risco por estar lá dentro, mas precisa garantir que não vai comer ou beber nada contaminado, assim nada será assimilado pelo organismo", afirma.
Os animais são lavados e tosados quando é necessário –a contaminação por poeira e sujeira fica toda no pelo--, até que a medição de radiação seja segura.
Durante o projeto, além de tratar os animais, os voluntários também coletam informações da região, especialmente em termos de contaminação por radiação e de forma ela afeta os animais da região. São realizados check ups completos, permitindo avaliar o impacto da contaminação em seus órgãos, tecidos e ossos, já que a contaminação se dá justamente pela acumulação de radiação por meio de alimentos e água consumidos.
A ideia é aproveitar que eles são livres para circular por toda a área também para medir a contaminação ambiental, tornando as pessoas mais seguras, já que a limpeza não ocorre em toda a zona de exclusão, somente no local do acidente.
Por isso, com o apoio de universidades, a ONG está desenvolvendo coleiras especiais para os animais, com detector de radiação e GSP. "Cães não têm detector de radiação, andam onde querem, completamente cegos do risco, fazem o que querem, rolam na sujeira, comem comida e água contaminadas pelo ambiente. Assim, quando o cão se mover, vamos rastrear seus movimentos e registrar os níveis de radiação nas áreas por onde eles passam. Dessa forma, é possível identificar áreas contaminadas que não tínhamos conhecimento até agora".
Segundo Lucas, a ONG quer que o valor destes animais seja reconhecido, e que eles não sejam vistos como um problema. "Existem muitos problemas com animais abandonados por todo o mundo, e a solução encontrada pelos governos é geralmente a mesma: matam todos os cães ou os colocam em prisões para animais onde ninguém precise olhar para eles. É preciso ver quais benefícios a população de cães de rua podem dar para a comunidade. Assim, eles terão valor, serão vistos como úteis, apreciados. Os cães podem ser parte de Chernobyl, e não um problema".
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