O que barcos com imigrantes à deriva no Mediterrâneo dizem sobre a política europeia atual
Três barcos levando 629 imigrantes devem chegar neste sábado (16) à Espanha, após passar uma semana à deriva no mar Mediterrâneo. Eles haviam tentado desembarcar na Itália e em Malta, mas os respectivos governos proibiram seus portos de recebê-los.
O percurso pela costa europeia é o mais recente sintoma do impasse sobre asilos no continente: de um lado, governos de direita assumem o poder e implementam políticas avessas à imigração; do outro, governos mais progressistas buscam uma solução humanitária à crise de refugiados que se arrasta desde 2015.
Enquanto esse xadrez político se desenrola, homens, mulheres e crianças esperam em alto-mar em condições insalubres e com mantimentos escassos. E tudo indica que a chegada dos três barcos à costa espanhola no sábado não será o capítulo final do drama de refugiados no continente europeu.
Entenda melhor essa história:
O que aconteceu com o barco
A embarcação Aquarius, pertencente à instituição de caridade SOS Méditerranée, resgatou no sábado passado 629 imigrantes ilegais que tentavam cruzar o Mediterrâneo, vindos principalmente da costa da Líbia. Entre os imigrantes, havia 123 menores desacompanhados, outras 11 crianças com famílias e sete mulheres grávidas. Eles são de 26 nacionalidade diferentes, sendo 23 africanas e três asiáticas (Afeganistão, Bangladesh e Paquistão).
No domingo (10), no entanto, o governo italiano proibiu que o navio atracasse em seus portos - os mais próximos da costa líbia. A Itália pediu, então, que Malta abrisse suas portas à embarcação, o que tampouco aconteceu.
Salvar vidas é um dever, transformar a Itália em um campo de refugiados, não, a Itália deixou de abaixar a cabeça e obedecer, desta vez, TEM ALGUÉM QUE DIZ NÃO”
Matteo Salvini, chefe do partido de ultradireita Liga, nas redes sociais
Na segunda-feira (11), quase 72 horas após o início dos embates diplomáticos, o governo espanhol se ofereceu para receber o grupo. A Itália providenciou, então, dois barcos militares para auxiliarem no translado, considerando preocupações com a distância e o mau tempo no Mediterrâneo. O Aquarius levará cem dos imigrantes até Valência, leste espanhol, e o restante irá nas embarcações italianas.
É nossa obrigação ajudar a evitar uma catástrofe humanitária e oferecer um porto seguro para essas pessoas”
Comunicado oficial do governo Espanhol
Tanto a recusa italiana quanto o convite espanhol acontecem em momentos cruciais das políticas internas dos países: os dois têm governos que acabaram de chegar ao poder, e as atitudes em relação aos imigrantes soaram como uma maneira de "mostrar trabalho". A Itália tem um recém-empossado governo conservador, e a Espanha passou a ser governada pelo Partido Socialista Operário Espanhol, que derrubou a direita depois de escândalos de corrupção.
Mais do que uma escolha política, porém, segundo o direito internacional, qualquer navio que receba pedido de ajuda no mar deve prestar auxílio, e o país responsável pela área deve fazer o resgate. No caso, Itália e Malta tinham os portos mais próximos ao Aquarius.
Encarregada do Aquarius, a ONG francesa SOS Méditerranée criticou via Twitter a solução. “Isso prolonga inutilmente o tempo passado para resgatados já vulneráveis.” A viagem da costa italiana para a espanhola, de 1.500 quilômetros de distância, dura quatro dias de barco.
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Governos europeus trocaram desavença
A recusa italiana gerou desconforto diplomático na União Europeia, com governantes trocando farpas sobre as decisões de seus vizinhos.
Na terça-feira (12), o presidente francês, Emmanuel Macron, chamou o governo italiano de cínico e irresponsável por passar a questão para outro membro do bloco.
Em resposta, o ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, disse que Paris não cumpriu a promessa de receber 9.000 refugiados, feita durante um acordo de 2015 para realocar os imigrantes entre os países da União Europeia - por questões geográficas, Itália e Grécia recebem um fluxo muito maior que os demais países.
Além disso, uma reunião prevista para a última quarta entre os ministros das Finanças dos dois países foi cancelada.
Caso é sintomático das mudanças nos governos europeus
A decisão italiana de deter a chegada de imigrantes não é única. Hungria e da Eslováquia, por exemplo, parabenizaram a decisão italiana.
Em diversos países do velho continente, políticos de direita chegaram ao poder, carregando a política local com medidas anti-imigração, o que impede a União Europeia de adotar uma resolução única sobre a questão.
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Para completar, na última quarta-feira o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, anunciou a pretensão de criar um “eixo de voluntários” para lutar contra a imigração ilegal. O eixo incluiria os governos da Áustria, Alemanha e Itália.
A inclusão da Alemanha, em particular, alimenta ainda um embate interno, já que a chanceler alemã Angela Merkel tem uma postura reconhecidamente mais receptiva a imigrantes. Um projeto proposto por ela de criar um sistema de asilo comunitário será debatido na cúpula da União Europeia no final de junho. O modelo é conhecido como regulamento de Dublin.
Entenda melhor o cenário político de cada país:
Alemanha
Em 2015, Merkel abriu as portas da Alemanha para o gigantesco fluxo de refugiados que chegava ao continente, em particular vindos da Síria, Iraque e Afeganistão.
Sua política de asilo, no entanto, é criticada em seu país por ser considerada muito generosa. Os políticos de direita que agora compõem a coalizão governamental - a CDU - vêm colocando em xeque as iniciativas de acolhimento de Merkel.
Desde que a coalizão foi formada, Merkel trava uma queda de braço com seu ministro do Interior, o ultraconservador Horst Seehofer, que quer endurecer a política migratória. Seehofer estava, inclusive, ao lado do chanceler austríaco quando do anúncio sobre o eixo contra imigração foi feito.
Itália
Após um impasse político que durou três meses e quase exigiu a realização de novas eleições no país, a Itália formou no começo de junho um governo de centro-direita, graças a uma aliança entre os partidos nacionalista Liga e o antissistema Movimento Cinco Estrelas.
Como resultado das coalizões feitas para garantir a governabilidade, o líder da Liga, Matteo Salvini, assumiu o Ministério do Interior. Salvini cumpre agora uma promessa de campanha de endurecer regras para a entrada de imigrantes na Itália - ele chegou a prometer expulsar 600 mil imigrantes ilegais no país.
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Áustria
Sebastian Kurz assumiu a chancelaria austríaca no fim de 2017, aliando-se à extrema direita e apresentando um projeto particularmente anti-imigração, seu carro-chefe eleitoral.
Segundo ele, o principal objetivo de seu governo é “avançar na proteção das fronteiras externas” da União Europeia. Entre as medidas propostas por Kurz, está a criação de centros de acolhida de imigrantes fora do bloco.
Kurz está agora prestes a assumir a presidência da União Europeia, dando um futuro bastante incerto ao regulamento de Dublin.
Espanha
Na península Ibérica, o governo de esquerda de Pedro Sánchez é agora um ponto isolado de receptividade aos imigrantes.
Sánchez assumiu o governo espanhol em 2 de junho, formando dias mais tarde um gabinete socialmente progressista, pró-europeu e majoritariamente feminino. Ele aceitou receber o Aquarius com o argumento de evitar uma catástrofe humanitária.
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