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Nos protestos de Gaza, crianças palestinas voltam feridas e traumatizadas

Raed Abu Khader, à direita, carrega seu filho Mohammed, de 12 anos, após retornarem de hospital em Gaza - Felipe Dana/AP
Raed Abu Khader, à direita, carrega seu filho Mohammed, de 12 anos, após retornarem de hospital em Gaza Imagem: Felipe Dana/AP

Todd Pitman

Da AP, em Gaza

12/12/2018 04h01

Quando Mazen al-Dalo levou dois de seus filhos pequenos para assistir aos protestos palestinos contra o bloqueio israelense contra Gaza que já dura uma década, ele sabia que poderia ser perigoso.

Manifestantes que arremessavam pedras eram baleados por soldados israelenses, e jipes israelenses blindados disparavam gás lacrimogêneo contra a multidão.

Mas era importante ensinar aos meninos sobre a história da Palestina, disse ele, e dar-lhes uma visão sobre as lutas dos tempos modernos que seu povo enfrenta. "Ver as coisas com os próprios olhos é diferente de ler sobre elas em livros", disse o pai de 44 anos, explicando sua decisão de levar as crianças de 8 e 11 anos, no último mês de abril.

A família só se aventurou a cerca de 400 metros da fronteira --um ponto que al-Dalo acreditava ser seguro, longe dos confrontos violentos. Mas assim como ele apontou para um grupo de soldados israelenses no topo de uma berma do outro lado da cerca israelense, um único tiro foi disparado.

A bala arrancou o polegar de Al-Dalo e atingiu seu filho de 8 anos, Mohamed, na perna --mais dois feridos em um conflito que começou no primeiro semestre e viu 948 palestinos com menos de 18 anos serem baleados e feridos pelas forças israelenses, de acordo com as Nações Unidas.

Em comunicado, o Exército israelense disse faz "tudo o que é possível para evitar ferir crianças". Mas o Hamas, o grupo militante que governa Gaza, "cinicamente usa os moradores de Gaza, especialmente mulheres e crianças, como escudos humanos e os coloca na frente de motins violentos."

O Hamas, que orquestrou as manifestações, nega tais alegações. Hazem Qassem, um porta-voz do Hamas em Gaza, disse que "não há como impedir que as pessoas participem. Há famílias inteiras (que vão) e não há como evitá-las".

Desde que as manifestações começaram em março, as crianças têm sido uma presença constante entre as multidões --algumas arremessando pedras com estilingues ou queimando pneus, outras apenas observando de longe. Enquanto muitos são trazidos pelos pais que seguram as mãos e os carregam nos ombros, outros aparecem sozinhos.

Mahmoud Abu Assi, que foi baleado na perna durante uma manifestação, tem a bandagem trocada em uma clínica em Gaza - Felipe Dana/AP - Felipe Dana/AP
Mahmoud Abu Assi, que foi baleado na perna durante uma manifestação, tem a bandagem trocada em uma clínica em Gaza
Imagem: Felipe Dana/AP

Dos 175 palestinos mortos até agora, pelo menos 34 tinham 18 anos ou menos, de acordo com uma contagem da Associated Press. O Ministério da Saúde de Gaza disse que 2.295 menores foram hospitalizados, 17 dos quais tiveram um membro amputado; pelo menos 5.124 foram feridos no total.

As vítimas jovens não são um fenômeno novo na região. No primeiro levante palestino que começou em 1987, crianças e adolescentes muitas vezes atiravam pedras nos soldados israelenses, que frequentemente respondiam com tiros. De acordo com o grupo israelense de direitos humanos B'Tselem, menores de idade representaram cerca de 21% das mortes na época. Nos últimos protestos, essa porcentagem é praticamente a mesma.

O Exército israelense, que usa atiradores de elite em cima de bunkers em forma de pirâmide, posicionados em intervalos regulares ao longo da fronteira, diz que se esforça para evitar vítimas civis e que só usa fogo vivo como último recurso. Mas também diz que deve se defender contra multidões 'terroristas' lançando granadas e bombas incendiárias, e impedindo aqueles que invadem ou danificam a cerca.

A Anistia Internacional e outros grupos de defesa dos direitos humanos argumentam que, de acordo com o direito internacional, o uso de munição viva só pode ser justificado diante de morte iminente ou ferimentos graves. Israel argumenta que é exatamente o que suas forças enfrentam. Um soldado israelense foi morto por um atirador do Hamas durante uma manifestação em julho passado e pelo menos seis ficaram feridos.

As imagens de vídeo que circulam nas redes sociais, no entanto, também têm mostrado manifestantes desarmados sendo baleados, incluindo alguns atingidos enquanto fugiam ou agitavam a bandeira palestina, disse a Anistia. Um incidente em setembro mostrou um menino de 16 anos sendo baleado no peito enquanto balançava as mãos no ar; ele havia acabado de atirar uma pedra na direção da cerca, mas não está claro se ela chegou lá.

Depois que outro adolescente foi morto a tiros em abril, o enviado da ONU Nickolay Mladenov perguntou em um tuíte: "Como a morte de uma criança em #gaza hoje ajuda a paz?" Mladenov respondeu sua própria pergunta, dizendo: "Não ajuda! Isso alimenta a raiva e gera mais mortes."

Os protestos foram alimentados por condições de vida desesperadoras em Gaza, um lugar em que a maioria dos moradores está proibida de sair. Mais de uma década desde que Israel e Egito impuseram o bloqueio a Gaza, o desemprego está acima de 50%, a água da torneira se tornou intragável e a eletricidade é esporádica. Israel diz que o bloqueio é necessário para impedir que o Hamas importe armas.

Raed Abu Khader, à direita, segura um pano molhado na testa de seu filho Mohammed, de 12 anos, na cidade de Gaza - Felipe Dana/AP - Felipe Dana/AP
Raed Abu Khader, à direita, segura um pano molhado na testa de seu filho Mohammed, de 12 anos, na cidade de Gaza
Imagem: Felipe Dana/AP

Quando as manifestações começaram, Raed Abu Khader pediu para que seu filho de 12 anos, Mohammed, ficasse longe, e o menino prometeu que o faria. Mas em 24 de agosto, Khader recebeu um telefonema urgente de um amigo: Mohammed havia sido baleado na perna em uma das manifestações realizadas naquele dia.

"Ele não deveria ter ido lá", disse Abu Khader sobre o garoto, que é incapaz de mover a perna esquerda desde então e teme que ela seja amputada. "Mas os israelenses só deveriam atirar para assustar as crianças, não para atingi-las".

Não está claro o que Mohammed estava fazendo quando o tiroteio ocorreu. Falando em uma cadeira de rodas cercada por amigos em uma rua de Gaza, ele se gabou de ter acabado de pendurar uma bandeira palestina na cerca quando o tiroteio começou. Mais tarde, deitado em sua casa escura com seu pai o cuidando, o adolescente não conseguiu responder quando perguntado onde estava. Olhando para o chão, seus olhos castanhos se encheram de lágrimas.

Abu Khader disse que o menino foi transportado para o local do protesto por meio de um dos ônibus organizados pelo Hamas que estacionam nas mesquitas de Gaza toda sexta-feira. O final do passeio foi um espetáculo que é parte guerra, parte festivo: shows culturais, espigas de milho, balões e pipas palestinas carregados com trilhas de brasas flamejantes destinadas às fazendas israelenses. Mais o confronto semanal: palestinos armados com pedras e bombas incendiárias lutando contra as Forças Armadas israelenses que usam drones equipados com gás lacrimogêneo.

"Eles vêem seus amigos indo e querem ir", disse Abu Khader. "Eles acham que é um jogo. Acham que vão se divertir. Eles não sabem o quão perigoso é."

A bala que atingiu Mohammed Abu Khader cortou os nervos de sua perna de tal forma que ele não consegue sentir ou mover seu membro. Se ele não sair de Gaza, seu pai de 39 anos afirma que o jovem provavelmente perderá a perna.

Hoje, o menino chora constantemente. Ele não vai mais para a escola. Seu pai diz que o garoto se sente inútil.

Mohammed al-Dalo, o menino cujo pai o levou ao protesto, também ficou traumatizado. Seu pai disse que ele está nitidamente mais quieto agora.

E como Mohammed Abu Khader, sua vida pode ter mudado para sempre.

Em uma clínica administrada pela organização Médicos Sem Fronteiras, o fisioterapeuta Eyad Abedelaal diz que Mohammed al-Dalo sofre de 'pé caído'. Um dano no nervo faz com que ele não consiga mover os dedos para cima e para baixo; o menino manca quando ele anda.

Eles tentarão realizar outra cirurgia para resolver o problema. "Mas, infelizmente, esse tipo de dano nervoso provavelmente durará para sempre", disse Abedelaal. "Para andar corretamente, ele provavelmente precisará de sapatos especiais para o resto de sua vida."

O pai de Mohammed, Mazen al-Dalo, diz que o menino pediu para voltar aos protestos, mas ele recusou porque não quer que o garoto se machuque novamente.

Ainda assim, ele não se arrepende. "Esse é o imposto que você tem que pagar para obter o direito de retorno", disse ele, referindo-se a um profundo desejo de recuperar as terras de onde centenas de milhares de palestinos fugiram ou foram forçados a sair há sete décadas, desde a guerra que criou Israel. "Nada é gratuito. Todos nós temos de nos sacrificar.