Como disputa entre China e EUA acelera vacinação na América Latina
O aumento de publicações nas redes sociais de pessoas com seus cartões de vacinação contra a covid-19 já culminou em uma "briga" de antecipação de calendários entre os governos de São Paulo e Rio de Janeiro. Essa empolgação aumenta com a expectativa de chegada de mais doses, muitas delas doadas por outros países.
Esse impulso na vacinação acontece em toda América Latina —que até o momento está muito atrás de Europa e América do Norte em imunização— e tem o mesmo pano de fundo: uma disputa geopolítica entre China e Estados Unidos por quem domina o mercado de imunizantes na pandemia.
As duas potências mundiais batalham pela liderança no desenvolvimento, produção, venda e doações de vacinas contra a covid-19, principalmente aos países pobres do mundo. A China conseguiu disparar na liderança, mas os Estados Unidos, com o governo de Joe Biden, correm atrás do prejuízo com enormes doações de vacinas com eficácias mais robustas.
China largou na frente
A China desenvolveu até agora ao menos três vacinas e vendeu seus insumos para mais de 90 nações. A estratégia do presidente Xi Jinping foi apostar na internacionalização das vacinas e imunizar aos poucos a sua população. Para controlar a pandemia, o país investiu na testagem em massa e no isolamento social rígido.
Até agora, o país asiático já doou cerca de 25 milhões de doses de vacinas ao mundo e mais de 840 milhões já foram vendidos —dos quais, 340 milhões já foram entregues.
A América Latina é a segunda região que mais recebeu imunizantes vendidos pelas fabricantes chinesas Sinovac, Sinopharm e CanSino —a primeira é a Ásia— e é a terceira que mais recebeu em doações chinesas —depois de Ásia e África.
"A América Latina claramente é vista como uma região onde há espaço para aumentar e influenciar a geopolítica chinesa, uma região para a qual os Estados Unidos não tiveram uma estratégia clara [de diplomacia] ao longo dos últimos anos. Assim, abriu uma oportunidade estratégica para a China", explicou Oliver Stuenkel, professor e coordenador do curso de pós-graduação em relações internacionais na FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas).
A China sabe que dificilmente ela será vista na América Latina como ameaça.
Oliver Stuenkel, professor da FGV-SP
A China também lidera as doações feitas por meio do consórcio Covax Facility, programa da ONU (Organização das Nações Unidas) que visa distribuir vacinas a todos os países do mundo.
Das mais de 47 milhões de doses já doados por meio do projeto, quase metade são chinesas, ou mais de 23 milhões. Em seguida, vem a Índia, com 8,8 milhões de doações, e só então os Estados Unidos, com um pouco mais de 7 milhões até 30 de junho.
A ação chinesa de privilegiar o mercado externo é corroborada por dados. Segundo a empresa de análise de dados Airfinity, a China havia exportado, até meados de maio, 42% de sua produção total —o correspondente a 252 milhões de doses.
Mesmo assim, ao notar que estavam atrasados na vacinação nacional contra a covid, os chineses mudaram a rota e surpreenderam o mundo pela capacidade de aplicação de doses na sua população. A China já é a nação que mais vacinou no mundo, chegando a aplicar mais de 20 milhões de doses em um único dia.
O país tem mais de 223 milhões de pessoas totalmente imunizadas até agora, 15% da sua população. Com esse ritmo, a meta é ter 75% de sua população totalmente vacinada no quarto trimestre de 2021.
EUA fizeram caminho inverso
Enquanto a China aumentava as vendas para outros países, até maio deste ano, quase todas as vacinas produzidas nos Estados Unidos eram utilizadas no próprio país. A atitude foi criticada por líderes mundiais, que pediam o fim da "barreira de exportação" de vacinas e tecnologia para produção de imunizantes.
Ao vacinar mais de 47% da população, os EUA entraram com os dois pés na porta do mercado de vacinas e anunciaram doações copiosas de imunizantes de doses dos laboratórios Pfizer/BioNTech, Janssen e Moderna.
Os estadunidenses divulgaram, em junho deste ano, a doação de mais 500 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 ao consórcio Covax até agosto deste ano.
Dias antes, o presidente Joe Biden havia confirmado o envio de outras 80 milhões de doses de vacinas. Desses, 41 milhões devem ir para a América Latina, Caribe, Ásia e África. Até então, a nação havia doado poucos milhões de doses, quase todos para México, Coreia do Sul (duas vezes), Paquistão e Taiwan —província considerada rebelde pela China.
Biden passou a sofrer pressões para aumentar essas exportações, seja por doação direta, seja por meio do consórcio Covax Facility, da OMS. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a chamar a distribuição de vacinas de "escândalo de desigualdade que está perpetuando a pandemia".
Por fim, as nações que compõem o G7 prometeram 2,3 bilhões em doação —já contando os 500 milhões dos EUA—, sendo que 1 bilhão será entregue até o fim de 2022. O bloco é formado por França, Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Japão e Itália.
A prioridade no envio das doses será do continente africano, o pior em taxas de imunização contra a covid, com grande parte das vacinas recebidas vindas de doações de China e Índia.
Os EUA também fizeram doações diretas a Colômbia, Argentina, Iraque, Ucrânia e Palestina de aproximadamente 14 milhões de doses ao todo.
Demanda e estratégia torna a região um terreno fértil
Segundo Oliver Stuenkel, diversos fatores fazem da América Latina um espaço atrativo de disputa das potências, mas a alta demanda por vacinas e a posição estratégica dos países tornam esse terreno ainda mais fértil.
"A América Latina tinha uma combinação única de escassez e falta de acesso à vacina, diferentemente de outras regiões como Índia, Europa e Estados Unidos e, ao mesmo tempo, tinha os meios financeiros para trazer as vacinas de fora, diferentemente de regiões muito pobres, como a África."
A China soube aproveitar seu papel de provedor no momento de emergência na América Latina e na África.
Oliver Stuenkel, professor da FGV-SP
Por outro lado, ainda há bastante espaço a ser explorado pelos Estados Unidos, ainda mais com vacinas cujas eficácias são mais altas que as chinesas.
"Muitos dos latino-americanos não estão vacinados ainda e, a partir do momento em que também há vacina ocidental disponível, a grande maioria optará por ela", explica o professor.
Da América Latina, o Brasil foi o país que mais recebeu imunizantes vendidos pela China —apesar dos atritos diplomáticos que culminaram na queda do então chanceler, Ernesto Araújo. No entanto, o país, ao politizar as vacinas, não soube utilizar da "guerra fria" das vacinas em seu benefício.
O Brasil se tornou um ator um tanto imprevisível, isso certamente complicou a tentativa de se aproveitar dessa dinâmica de tensão entre Pequim e Washington. Sem dúvida o fato de Biden não ter anunciado doações diretas ao Brasil tem a ver com a atitude atual presidente brasileiro.
Oliver Stuenkel, professor da FGV-SP
Apesar de viver, atualmente, uma situação semelhante à da Índia na pandemia, com altos números de casos, mortes e variantes preocupantes em circulação, os EUA preferiram doar doses diretamente para os indianos e outros países, ignorando a situação brasileira.
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