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Haiti não estava pronto para saída de missão de paz, diz militar brasileiro

Ex-soldado, Everton Cipriano ficou no Haiti entre novembro de 2016 e junho de 2017  - Arquivo pessoal
Ex-soldado, Everton Cipriano ficou no Haiti entre novembro de 2016 e junho de 2017 Imagem: Arquivo pessoal

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

08/07/2021 04h00

Everton Cipriano tinha 22 anos quando desembarcou em Porto Príncipe, capital do Haiti. Soldado do Exército à época, ele integrou a penúltima tropa da missão de paz da ONU (Organização das Nações Unidas), em novembro de 2016.

Cipriano ainda estava lá quando o então candidato a presidente Jovenel Moise (assassinado ontem dentro de casa) foi eleito. As tropas brasileiras e internacionais deixaram o país em 2017, quando a ONU decidiu encerrar a missão, mesmo diante de uma paz considerada frágil e de uma miséria absoluta dos habitantes do Haiti.

"O país não estava pronto, de forma nenhuma. Havia muitas coisas a se fazer. O país, pelo que a gente via e convivia, não estava pronto para andar com as próprias pernas. Seria necessário mais tempo", explica o ex-militar, que deixou o Exército em fevereiro e hoje cuida do próprio negócio em Maceió.

Eu até acredito que a missão vai ser restabelecida. A questão da segurança lá era a dificuldade.

Mesmo diante do cenário caótico deixado lá, ele reconhece que o assassinato do presidente o surpreendeu. "Foi uma sensação de surpresa. A gente não imaginava que a saída do presidente antecessor viria a ter um efeito maior", conta.

Tensão no país

O assassinato do presidente ocorreu em meio a uma onda crescente de violência no país, que está politicamente dividido e enfrentando uma profunda crise humanitária e de escassez de alimentos. Há temores de uma desordem generalizada.

Cipriano explica que sempre houve tensão no país, mesmo antes do terremoto em 2010, que deixou mais de 200 mil mortos. "Essa tensão era por causa da política. Sempre foi muito instável, desde 2004 [quando teve início a missão da ONU]. Foi por causa dessa instabilidade que o Exército foi para lá, para estabilizar esse conflito", diz.

Ele diz que a missão de paz tinha como tarefa preparar as forças de segurança locais para tomarem conta do país quando eles fossem embora.

"As tropas haitianas aprendiam com as tropas da ONU. Quando a missão estava lá, davam essas orientações às tropas nacionais, mas eles não tinham essa estabilidade pública. Por isso que a gente imaginou que, quando saíssemos, iam ter dificuldades", relata.

Eleição de Moise foi tranquila

Soldado cumprimenta criança haitiana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Soldado Cipriano cumprimenta criança haitiana
Imagem: Arquivo pessoal

Cipriano conta que patrulhava as ruas de Porto Príncipe no dia 30 de novembro de 2016, quando houve a eleição de Moise. "No dia da votação, não havia tanto movimento. Foi um dia como outro qualquer. A única rotina alterada foi a nossa, para garantir a eleição, mas não tinha manifestação, nem teve depois", relata.

A vitória de Moise, diz Cipriano, não foi comemorada nem houve protestos. "Foi contido, eles não tinham aquela euforia. Eles não protestavam a favor ou contrário a um candidato, mas contra a política, o sistema político e as consequências políticas no país", diz.

"Nesse período de campanha, de eleição, havia muita insatisfação da população, mas não tanto contra ele. Era contra o governo que estava no poder", explica.

Miséria absoluta

Quando chegou a Porto Príncipe, o então soldado conta que foi lotado no bairro Cité Soleil, a 8 km do centro de Porto Príncipe.

Bairro Cité Soleil, no Haiti - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bairro Cité Soleil, no Haiti
Imagem: Arquivo pessoal

"Era a área mais devastada do país. Ali a gente via a insatisfação. Era uma população muito pobre e muito refém das consequências políticas do governo de Papa Doc [François Duvalier, que comandou o país entre 1957 e 1971]. A gente encontrou resquícios da devastação desse governo", conta.

Na rua principal do bairro, eles sempre faziam protesto quando chovia. Caía dez minutos de água e já alagava tudo.

Ele cita que se acostumou a ver a pobreza, não só nas áreas mais miseráveis. "Havia pessoas pedindo nas ruas, muita dificuldade de atendimento médico. Eles batiam sempre na porta da base à procura desse atendimento. Tínhamos médicos lá, mas, se ele não fosse capaz de atender o caso, a gente levava para um hospital. Na estrutura do Haiti, eles não tinham condições de tratar nada, nem uma queimadura simples, por exemplo", revela.

Havia muita fome, eles vinham também atrás de comida. A gente guardava e dava comida a eles. Também não tinham água potável, então eles tomavam banho uma vez por semana. Diziam que tomavam banho só quando iam para igreja, dia de sábado, não podiam tomar nos outros dias por causa das condições insuficientes.