Chile: 'Bolsonaro polido' reforça ameaça da ultradireita na América Latina
Acontece hoje o primeiro turno das eleições no Chile e os dois candidatos favoritos não poderiam ser mais opostos. De um lado a esquerda jovem de Gabriel Boric, de outro a extrema-direita de José Antonio Kast, já chamado de "Bolsonaro chileno". Este último desperta o temor de cientistas políticos de que, com sua vitória, uma onda populista conservadora se consolide na América Latina.
Até o dia de hoje, ainda é impossível prever quem sairá vencedor tanto deste quanto do próximo turno. Embora as últimas pesquisas de opinião apontem Kast com mais de 20% das intenções de voto, as pesquisas no Chile são famosas por errarem suas previsões. Além disso, não existem pesquisas de bocas de urna, como as do Brasil, pois são proibidas as sondagens até 15 dias antes do pleito.
Ainda assim, o cenário mais provável é o de um segundo turno entre os dois favoritos das pesquisas, que surfam na onda do anti-establishment. "Temos dois candidatos que vêm de fora do sistema partidário tradicional e que, de alguma forma, representam esta demanda anti-sistema", explica Juan Pablo Luna, professor do Instituto de Ciência Política da Pontifícia Universidad Católica de Chile.
De um lado há um que se identifica com as mudanças e com a demanda por transformações estruturais na sociedade, que é o Boric. De outro está um que promete uma interrupção no processo de mudança e, de alguma forma, uma reversão para o modelo da ditadura chilena."
Juan Pablo Luna, professor do Instituto de Ciência Política da Pontifícia Universidad Católica de Chile.
"Se Pinochet estivesse vivo, votaria em mim"
Apesar de tentar se distanciar da alcunha de pinochetista no último debate de candidatos, Kast já foi o rosto das campanhas do ditador Augusto Pinochet em 1988. Seu pai era um ex-oficial do exercito nazista e um de seus irmãos foi ministro do ditador chileno. Ele próprio já disse que, "se Pinochet estivesse vivo, votaria em mim".
Sua política conservadora se assemelha àquela defendida por Jair Bolsonaro (sem partido) no Brasil, o que rende a Kast o apelido de uma versão mais "polida" do brasileiro. "Kast é bastante parecido com a direita autoritária de Bolsonaro. Mas tem um tom mais polido, em termos de seu estilo", afirma Luna.
Ele tem um projeto político fortemente autoritário em termos de restrição dos direitos de cidadania civil e é um projeto que, pelo menos no programa, ataca os direitos das minorias: mulheres, migrantes e povos indígenas".
Juan Pablo Luna, professor do Instituto de Ciência Política da Pontifícia Universidad Católica de Chile.
"O Kast é um Bolsonaro criado com a etiqueta da oligarquia", concorda Raoní Beltrão, mestre em Direitos Humanos pela Universidad de Madrid. "É um Bolsonaro mais polido, que não fala tantos palavrões, que tem articulações políticas com meios mais lícitos, com empresariado, com banqueiros, não com milícias armadas".
Frente a um cenário de candidatos conservadores na América Latina, em que Bolsonaro é justamente o expoente da região depois da queda de Donald Trump nos Estados Unidos, a vitória de Kast preocupa cientistas políticos.
"As consequências seriam muito lamentáveis e graves porque isso fortalece não apenas a nível nacional, mas também a nível internacional um eixo de lideranças com um tom semelhante e com convicções democráticas duvidosas", lamenta Luna.
Ele reviveria o populismo de extrema-direita no continente. Querendo ou não, essa fagulha pode voltar a incendiar outras, como no Brasil. Quero lembrar que Donald Trump continua ativo politicamente."
Raoní Beltrão, mestre em Direitos Humanos pela Universidad de Madrid.
Chile oferece menos espaço para radicalização
Mas diferentemente de Bolsonaro, Kast não encontraria um governo fácil pela frente e muito menos uma sociedade tão conservadora. "Tem questões que o Bolsonaro lida que o Kast não pode lidar, por exemplo, o Kast tem no seu programa uma parte ligada a ambiente e carbono zero", aponta Talita Tanscheit, doutora em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
"A discussão em torno do matrimônio igualitário e do aborto, o Kast não pode ter uma posição radical como o Bolsonaro, porque a grande maioria do Chile é favorável a essas duas agendas", completa.
Seu oponente, no entanto, também traria uma mudança significativa para a América Latina, já que seria um expoente da nova esquerda em um governo da região. "Seria o primeiro dirigente jovem de esquerda a chegar ao poder no continente", aponta Raoní Beltrão, que cita os países nórdicos como exemplo de local onde esta onda já ocorre.
Juan Pablo Luna compara um possível governo de Boric com o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil em 2002.
É um governo de certa forma como a primeira eleição de Lula. Gera seus medos no empresariado e minha impressão é que Boric terá que governar com o centro e dialogar com setores que têm muito poder na sociedade."
Juan Pablo Luna, professor do Instituto de Ciência Política da Pontifícia Universidad Católica de Chile.
A futura Constituição em jogo
Essas eleições são as mais importantes do Chile deste século, pois ocorrem dois anos depois de intensos protestos no país. A onda de insatisfação gerou a instalação de uma assembleia constituinte que busca destruir de vez o último legado de Pinochet no país.
No entanto, dependendo dos resultados da votação, a constituinte pode estar em risco. Isso porque Kast já se mostrou contrário ao processo. Após a constituinte escrever a nova carta magna do Chile, é necessário ser feito um novo plebiscito para que ela seja aprovada, o chamado referendo de saída. É aí que as eleições de agora podem alterar o processo.
"Se o Kast for eleito, quer dizer que ele vai ter um congresso muito conservador, que pode levar a uma continuidade da revolta social e a uma instabilidade política que põe em xeque o processo constituinte", explica Raoní Beltrão.
Se nesse referendo de saída você tiver um governo de extrema-direita boicotando recursos da constituinte e pondo muito recursos na campanha contra, você pode ter uma situação em que eles ganham na saída. Sendo rechaçada essa Constituição na saída, fica vigente a Constituição do Pinochet. O regime se mantém. É isso que está em jogo nessas eleições agora".
Raoní Beltrão, Mestre em Direitos Humanos pela Universidad de Madrid.
Por outro lado, ainda existe a possibilidade oposta, que seria a nova Constituição a depor o presidente que vencer as eleições antes dele completar o mandato de quatro anos, como explica Talita Tanscheit: "Se a Constituição mudar o sistema de governo, nem que seja uma vírgula na questão do presidencialismo, vão ter que dissolver o governo e convocar novas eleições para adequar ao que a Constituição definiu".
Pode ser que este debate imenso que estamos tendo sobre o futuro do Chile nos próximos 4 anos dure muito menos".
Talita Tanscheit, doutora pela UFRJ
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