'Decidi deixar Ucrânia após governo criminalizar imprensa', diz jornalista
O jornalista André Liohn, que atuou na cobertura da guerra da Rússia contra a Ucrânia como correspondente do UOL e da Folha de S.Paulo por cinco semanas, decidiu ontem deixar a Ucrânia.
Ele relatou atos de censura por parte de forças policiais e criminalização de jornalistas pelo governo ucraniano. Ao UOL, ele conta como foi a saída dele da Ucrânia por meio da fronteira da Polônia em um furgão com gatos pertencente a uma entidade humanitária. Leia a seguir e assista ao vídeo:
"Havíamos saído de Kiev exatamente às 7h de domingo (27) e já era quase 17h. Nosso plano era cruzar a fronteira e entrarmos na Polônia ainda naquela tarde.
Faltavam pouco mais de 150 km e não esperávamos que fôssemos ser obrigados a permanecer por quase uma hora em um posto de comando controlado por soldados do Exército e policiais ucranianos.
O lugar, que fica perto de Lviv e a cerca de uma hora da fronteira, tinha uma barreira de blocos de concreto que forçavam os carros a diminuir a velocidade em um inevitável zigue-zague para superá-las. Todos os agentes carregavam armas automáticas.
'Por que vocês estão deixando a Ucrânia?', me perguntou um dos policiais com um fuzil Kalashnikov preso próximo ao corpo, enquanto olhava minhas fotos, mensagens e atividades nas mídias sociais usando meu próprio telefone.
O fato de eu ter nascido no Brasil, mas viajar com um passaporte norueguês, também chamou a atenção do soldado que chegou a nos ameaçar, se não entregássemos a ele nossos telefones. Eu, um jornalista italiano e nosso motorista ucraniano entregamos então nossos celulares.
Ontem, o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, decretou uma lei marcial que prevê até 12 anos de prisão para jornalistas que mencionem em seus artigos informações que possam, segundo o governo ucraniano, ser usadas pela Rússia para futuros ataques contra a Ucrânia.
Entre os pontos previstos na lei, jornalistas não podem mencionar locais, datas e outros dados específicos sobre eventos sem que autoridades da Ucrânia tenham antes autorizado a publicação.
Dias antes, na cidade de Zaporíjia, no sudeste da Ucrânia, um grupo de policiais havia me abordado exigindo uma suposta password [senha] que provaria minha real identidade. Sem entender se eles estavam me testando com uma mentira, eu simplesmente disse a verdade: que nunca ninguém havia me dado nenhuma password.
Por causa disso, fomos tirados do carro e interrogados como se fôssemos responsáveis por algum crime muito grave.
No mesmo dia, outros fotógrafos foram levados contra a vontade para uma delegacia de Zaporíjia e mantidos lá até que seus empregadores, neste caso, a revista de um grande jornal norte-americano, conseguisse entrar em contato com autoridades locais provando a identidade dos fotógrafos.
Um fotógrafo polonês foi severamente agredido por policiais no centro de Kiev em plena luz do dia e praticamente à vista de todos no local. Após apresentar sua credencial, ele ainda foi acusado de falsificar sua identidade, agredido fisicamente e exposto a violência moral.
As autoridades ucranianas foram alertadas e, até agora, não apresentaram nenhuma resposta.
Nas redes sociais, jornalistas ucranianos estão manifestando publicamente medo dessas ações e perseguições. Eles —mais do que todos— são os mais vulneráveis em relação à censura e à violência do Estado.
Em dezembro de 2011, ainda no início da guerra da Síria, eu fui preso e agredido por extremistas que me acusaram de ser um espião. Ontem, sentindo que a situação na Ucrânia tende a piorar, sabendo que esse processo de demonização de jornalistas dificilmente tem volta, decidi —ainda que com muita tristeza— sair da Ucrânia.
Desde o início da guerra, em 24 de fevereiro, um jornalista foi morto por semana, em média, na Ucrânia. A responsabilidade por essas mortes recaiu sobre as tropas russas, mas sabemos que a chance de que esses profissionais tenham sido mortos por ucranianos, e não por russos, é muito grande.
O governo tem criminalizado jornalistas, nos responsabilizando pelos recentes ataques russos que atingiram pontos estratégicos do país.
Ao mesmo tempo, em posse de armas e fundos enviados por dezenas de países europeus e pelos Estados Unidos, o governo ucraniano está conseguindo reverter a situação —de não apenas se opor à invasão russa, mas também ensaiar um possível contra-ataque para recuperar áreas ucranianas ocupadas desde 2014.
Nessa posição, o governo se sente menos dependente da opinião pública. Como pode se comunicar diretamente com apoiadores nas redes sociais, o governo de Zelensky deixa de ter interesse em jornalistas que atuam com independência.
Neste momento, me pareceu coerente deixar a Ucrânia. Espero que, em breve, eu possa voltar.
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