Igrejas milenares e ruínas romanas: o patrimônio ameaçado na Faixa de Gaza

Os mosaicos ricamente adornados trazem palmeiras, cenas de caçadas, leões e gazelas, vacas e cavalos, cachos de uvas e outros elementos do cotidiano, da flora e da fauna. Descobertos em 1996, pertenciam a uma igreja bizantina construída há mais de 1,5 mil anos. Suas ruínas, após anos de trabalho de restauro e um investimento milionário, abriram as portas para o público em 2022, que pode apreciá-las sobre tablados que protegem os delicados trabalhos.

Poderia ser mais uma bela atração turística no Mediterrâneo. Bem, na verdade ela é. Só que fica na Faixa de Gaza.

A igreja, do século 5º d.C., fica em Jabalia, quatro quilômetros ao norte da Cidade de Gaza. Inaugurada em janeiro do ano passado, ela servia como um "afago do grupo terrorista Hamas, que controla a Faixa de Gaza, a seus 'irmãos cristãos'", descreveu a agência de notícias AFP. Gaza tem cerca de mil habitantes cristãos em uma população de 2 milhões de pessoas.

Sítio arqueológico de Mukheitim, que abriga uma antiga igreja bizantina, em Jabalia
Sítio arqueológico de Mukheitim, que abriga uma antiga igreja bizantina, em Jabalia Imagem: Majdi Fathi/NurPhoto via Getty Images

A igreja de Jabalia é um dos poucos tesouros arqueológicos que restam em um lugar tão rico de história quanto de tragédia. Há muito o que descobrir ainda, quando a situação permitir. Em 2013, durante outra onda de violência entre o Hamas e Israel, o arqueólogo palestino Hayam Albetar resumiu a questão à BBC: "Debaixo de Gaza há toda uma outra Gaza".

No ano passado, um fazendeiro descobriu um mosaico bizantino com 17 aves e outros animais no campo de refugiados de Bureij. O local fica bem próximo à fronteira israelense. Jabalia está no noticiário recente porque foi bombardeada na semana passada e fica dentro da área de evacuação de civis imposta por Israel.

São patrimônios que a humanidade conhece há pouco tempo e que estão no olho do furacão de uma guerra, iniciada pelo atentado terrorista do Hamas a Israel, que mexe com os brios do Ocidente como nenhum outro conflito das mesmas proporções é capaz de fazer.

Mosaico no sítio arqueológico de Mukheitim, que abriga uma antiga igreja bizantina, em Jabalia
Mosaico no sítio arqueológico de Mukheitim, que abriga uma antiga igreja bizantina, em Jabalia Imagem: Majdi Fathi/NurPhoto via Getty Images

Existem outros monumentos e edifícios históricos em Gaza que cada nova guerra ameaça (só nos últimos anos houve embates também em 2008, 2009 e 2014). Ao longo de milênios, o pequeno território foi disputado, invadido ou conquistado por egípcios, romanos, bizantinos, árabes, cruzados, mamelucos, otomanos, britânicos, egípcios modernos e israelenses. Pouca coisa sobrou de pé, mas o que restou tem grande valor.

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Fora o que há a se descobrir. Além do mosaico bizantino, encontrado ano passado, há apenas três meses arqueólogos palestinos desenterraram um cemitério romano de 2 mil anos, com mais de 100 tumbas e sarcófagos feitos de chumbo.

No período dos romanos e bizantinos, Gaza era uma das cidades mais prósperas da Palestina. Ainda assim ela não tomou parte nos distúrbios que trouxeram problemas à província, então sua história foi tranquila, explica Carol Glucker no livro "The City of Gaza in Roman and Byzantine Periods" ("A Cidade de Gaza nos períodos romano e bizantino", sem edição brasileira).

Isso quer dizer há muito mais relíquias romanas debaixo dessas tumultuadas terras.

Conheça outros patrimônios da Faixa de Gaza.

Mosteiro de Santo Hilário

Sítio arqueológico do Mosteiro de Santo Hilário, no centro de Gaza
Sítio arqueológico do Mosteiro de Santo Hilário, no centro de Gaza Imagem: MOHAMMED ABED / AFP
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Localizado no sítio arqueológico de Tell Umm el-'Amr, estas ruínas foram um templo construído ao longo de quatro séculos, testemunhando a mudança do domínio romano bizantino para o árabe abássida em Gaza. Juntamente com a igreja de Jabalia, o mosteiro passou por um processo de restauro de três anos, financiado pelo British Council em parceria com a Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém e duas universidades palestinas.

A revitalização era mais que necessária. Organismos internacionais colocaram Santo Hilário em listas de patrimônios ameaçados. O ostracismo da Faixa de Gaza não ajuda também. Desde 2007, quando os extremistas do Hamas assumiram o controle, o trânsito de pessoas e mercadorias é restrito por céu, terra e mar. É um território pouco maior que a área urbana de Curitiba, cujos vizinhos, Israel e Egito, isolaram do mundo há 16 anos.

Rene Elter, arqueólogo e diretor científico do projeto de restauro do mosteiro, explicou ao site "The National News", dos Emirados Árabes Unidos, a dificuldade de trabalhar nessas condições:

Para restaurar a cripta, tivemos que fazer 3 mil blocos de pedras cortadas para recriar o teto em arco que existia há séculos. Ferramentas para isso existem na Cisjordânia, mas não em Gaza. Era impossível importar ferramentas para Gaza para cortar a pedra, então o que fizemos? Nós nos adaptamos. Nós mesmos fizemos as ferramentas.

Os arqueólogos acreditam que ainda há muito o que se descobrir nessas ruínas, que podem figurar entre as maiores do Oriente Médio. O mosteiro, do século 4º d.C., é um destino turístico a ser descoberto até pelos próprios cidadãos de Gaza, segundo a equipe de restauro.

Palácio do Paxá

Palácio do Paxá
Palácio do Paxá Imagem: Reprodução/Instagram@hiddenpalestine
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Estamos acostumados a associar Gaza a escombros, bombardeios, terroristas e repressão. Mas há amostras da Gaza que funcionava como uma ponte da Arábia para a Europa e uma faixa mediterrânea que atraía visitantes à Terra Santa.

É o caso do Qasr al-Basha, o Palácio do Paxá, símbolo da época do sultão Baibars, que comandou o Sultanato Mameluco do Cairo no século 13. Quatrocentos anos mais tarde, quando Gaza fazia parte do Império Otomano, o forte ganhou uma série de melhorias. Hoje, ele abriga um colégio e um museu de antiguidades, como jarros de 1.700 anos que transportavam azeite e vinho em navios que faziam comércio no Mediterrâneo.

Grande Mesquita de Gaza

A Grande Mesquita de Gaza em foto de março de 2023
A Grande Mesquita de Gaza em foto de março de 2023 Imagem: Saher Elghorra/TheNews2/Folhapress

Também conhecida como Omari, é a mais antiga mesquita em uso de Gaza, e um poço enorme de história. A primeira encarnação do edifício foi uma igreja bizantina do século 5º d.C. Depois disso, foi transformada em mesquita, conquistada pelos cruzados e reconvertida em igreja, retomada pelos árabes, destruída pelos mongóis, reconstruída pelos otomanos e bombardeada pelos britânicos na Primeira Guerra Mundial.

Nos conflitos mais recentes entre Hamas e Israel, as mesquitas sofreram bastante. Em 2014, o governo israelense afirmava que o grupo estocava mísseis e armamentos nos templos e que, por isso, eles viravam alvos militares. Na guerra de 2014, segundo a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), 63 mesquitas foram destruídas, e 150, danificadas.

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Isso inclui templos relevantes culturalmente, como uma mesquita de 700 anos, também chamada Omari, reduzida a cinzas em Jabalia. A mesquita de Gaza, por ora, resiste.

Hammam Al-Sammara

Hammam Al-Sammara
Hammam Al-Sammara Imagem: Reprodução/visitpalestine.ps/

Única casa de banho turco de Gaza, e uma das mais antigas do gênero, ela tem, estima-se, mil anos de existência. Sabe-se com certeza que ela já era usada no tempo dos sultões mamelucos, no século 14.

Também chamada de Hammam Samaritano, a casa, com suas piscinas aquecidas e serviços de massagem, acaba funcionando também como uma espécie de salão de beleza acessível para boa parte da população, de acordo com uma reportagem do site "Al-Monitor", especializado em Oriente Médio.

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