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Mesmo após 15 colegas morrerem de ebola, enfermeira continua trabalho em Serra Leoa

Josephine Sellu é vice-chefe de enfermagem de um hospital público de Serra Leoa - Samuel Aranda/The New York Times
Josephine Sellu é vice-chefe de enfermagem de um hospital público de Serra Leoa Imagem: Samuel Aranda/The New York Times

Adam Nossiter e Ben C. Solomon

Em Kenema (Serra Leoa)

26/08/2014 06h01

A melhor defesa contra o desespero era continuar trabalhando. Muitas vezes, essa escolha estava longe de óbvia: Josephine Finda Sellu perdeu 15 de suas enfermeiras para o ebola em rápida sucessão e pensou em deixar o trabalho.

Ela não o fez. Sellu, a vice-chefe de enfermagem, é uma rara sobrevivente que nunca deixou de trabalhar arduamente no hospital público daqui, a maior armadilha mortal em Serra Leoa para o vírus durante os meses sombrios de junho e julho. O clube dela é seleto, consistindo talvez de três mulheres da equipe original de enfermagem para o ebola que não contraíram o vírus e que assistiram a colegas morrerem, mas que ainda continuam trabalhando.

"Eu sou necessária aqui", disse Sellu, 42 anos, que supervisiona as enfermeiras para o ebola. "Eu sou uma veterana. Todas as novas enfermeiras olham para mim." Se ela partir, ela disse, "a coisa toda ruiria".

Josephine Sellu  - Samuel Aranda/The New York Times - Samuel Aranda/The New York Times
"Tem sido um pesadelo para mim", lamenta Josephine Sellu
Imagem: Samuel Aranda/The New York Times

As outras enfermeiras a chamam de Mamãe, mas ela parece um marechal de campo em avental médico marrom claro. Ela vai avançando, exortando as enfermeiras a voltarem ao trabalho, inspecionando os alimentos para os pacientes, realizando uma dança para colegas de trabalho que contraíram o vírus e que sobreviveram –"enfermeiras sobreviventes", ela as chama com entusiasmo– e dando ordens de dentro do traje da cabeça aos pés que a protege de seus pacientes.

Na campanha contra o vírus ebola, que está varrendo partes do Oeste da África em uma epidemia pior do que todos os surtos anteriores da doença somados, a linha de frente é costurada por pessoas como Sellu: médicos e enfermeiros que dão suas vidas para tratar pacientes que provavelmente morrerão; faxineiros que limpam as poças letais de vômito e dejetos, para que os centros de saúde em dificuldades possam permanecer abertos. Motoristas que se aventuram nas aldeias tomadas pela doença para pegar pacientes; funcionários encarregados da tarefa perigosa de impedir que outras pessoas sejam infectadas pelos cadáveres altamente contagiosos.

O sacrifício deles é evidente pelas estatísticas. Pelos menos 129 funcionários de saúde morreram combatendo a doença, segundo a Organização Mundial da Saúde. E apesar de muitos trabalhadores terem fugido, abandonando sistemas de saúde já precários, muitos novos recrutas se apresentaram voluntariamente –com frequência por pouca ou nenhuma remuneração, às vezes abandonando suas casas, comunidades e até mesmo famílias no processo.

"Se não fosse voluntário, quem faria este trabalho?", perguntou Kandeh Kamara, um dos cerca de 20 homens jovens que realizam um dos trabalhos mais sujos da campanha: encontrar e enterrar os cadáveres por todo o leste de Serra Leoa.

Quando o surto começou meses atrás, Kamara, 21 anos, foi ao centro de saúde em Kailahum e ofereceu ajuda. Quando os responsáveis pelo centro disseram que não tinham como pagá-lo, ele aceitou assim mesmo.

"Não há outras pessoas para fazer isso, então decidimos fazê-lo para ajudarmos a salvar nosso país", disse sobre si mesmo e outros homens jovens. Eles chamam a si mesmos de "os meninos de sepultamento".

A organização Médicos Sem Fronteiras os treinou para aprenderem a vestir o equipamento de proteção e a como remover em segurança os cadáveres potencialmente infectados pelo ebola. Eles percorrem estradas de terra esburacadas por até nove horas por dia.

Ao fazerem seu trabalho, os meninos de sepultamento se tornaram párias. Muitos foram excluídos de suas comunidades por temor de que possam trazer o vírus para casa. Algumas famílias se recusam a deixá-los voltar.

Depois que Kamara começou a trabalhar, sua família disse que ele não era mais bem-vindo em sua aldeia. Seu tio, o patriarca da família, lhe disse para nunca voltar. Inicialmente, ele ficou hospedado com um amigo, mas a esposa do homem ficou com medo e também o expulsou. Sem salário por meses, ele às vezes mendigava na rua após o trabalho para conseguir dinheiro suficiente para comer. Recentemente, ele conversou com o proprietário de uma pequena loja sobre liberar espaço suficiente em uma sala nos fundos, para que ele dormisse lá.

Ele finalmente está sendo remunerado, cerca de US$ 6 por dia, e espera encontrar um quarto para alugar, provavelmente a um preço inflacionado. Alguns dos outros meninos de sepultamento tentaram alugar apartamentos, mas foram rejeitados.

Sobreviventes são chamados para cuidar de pacientes com ebola

"Se eu tiver uma vida longa, eu poderei voltar ao meu povo", disse Kamara. "Eu poderei dizer a eles: 'Eu estou fazendo este trabalho por vocês'. Talvez eles possam me entender."

No hospital público a poucas horas de distância de Kenema, fotos das enfermeiras mortas ainda estão coladas nas paredes deterioradas. Bilhetes para as mulheres jovens ceifadas repentinamente, como Elizabeth Lengie Koroma –"Lengie, nós te amamos, mas Deus te ama"– oferecem lembretes visuais da dor que permanece.

"Hoje três, amanhã quatro –é assim rápido", lembrou Sellu, com seu modo alegre rapidamente dando lugar à tristeza. "Nós dissemos: 'O que está acontecendo?'"

Ela acrescentou: "Você pergunta: 'Quem será o próximo?'" Ao todo, 22 funcionários do hospital morreram.

Pouca proteção

Enfermeiras e médicos daqui empregaram sua experiência no tratamento da febre de Lassa, outra doença mortal que causa sangramento. Mas o ebola é de uma ordem diferente, e eles nunca o tinham visto antes.

Com os primeiros casos, as enfermeiras simplesmente usavam os óculos de Lassa. O ebola exige uma maior proteção à face. Elas também usavam "luvas leves", disse Sellu. Agora, ela usa dois pares de luvas de borracha grossas. As precauções iniciais inadequadas tiveram consequências fatais, mesmo para o reverenciado médico jovem que chefiava a unidade de Lassa, o dr. Sheik Umar Khan.

"Era um homem cuidadoso, sempre dizendo, 'Não faça isso, não faça aquilo'", disse Sellu. "É um mistério." Khan morreu em 29 de julho, um duro golpe à nação.

Sellu também falou sobre as enfermeiras que perdeu para o ebola. Geralmente atenta em projetar força para suas subordinadas, ela começou a chorar.

"Tem sido um pesadelo para mim", disse, com seus traços contorcendo. "Desde que a coisa toda começou, eu tenho chorado muito." Ela acrescentou: "Chegou a um ponto em que pensei em deixar este trabalho. Era demais para mim".

Mas a lição que ela aprendeu parece inevitável para ela. "Você não tem opção. É preciso salvar os outros", disse Sellu. "Você vê seus colegas morrerem e ainda assim segue em frente trabalhando."

No auge das mortes no mês passado, os dois filhos adolescentes de Sellu e a família dela na capital, Freetown, pediram que ela parasse. As enfermeiras restantes no hospital ameaçaram se rebelar. Certa manhã, 40 delas apareceram diante da porta da casa dela em Kenema, gritando, "Se uma de nós morrer de novo, prepare-se para morrer!"

Assustados, os filhos dela a alertaram: "Elas vieram atrás de você! Mãe, não volta para lá!", lembrou. "E amigos e parentes em Freetown diziam: 'Não volte para lá!'"

Sellu desobedeceu a todos. "Eu voltei furtivamente no fim do dia", ela disse.

Com precisão, ela recorda do dia em que o pesadelo teve início no hospital: 25 de maio. Na vizinha Guiné, onde começou a epidemia, a crise parecia, falsamente, estar passando. Em Kenema, um paciente estava sangrando profusamente.

"As enfermeiras estavam curiosas. Elas me chamaram", ela disse. "O dr. Khan disse: 'Faça o exame'." Deu positivo para ebola.

"Todo o hospital ficou histérico", disse Sellu. "Todas as enfermeiras foram colocadas em quarentena."

Mas foi o segundo caso, no anexo privado do hospital para os VIPs, "que lançou a calamidade sobre nós", disse. O paciente era um chefe local sofrendo de diarreia severa e vomitando. Ele infectou três enfermeiras e um carregador. O carregador e uma enfermeira morreram. A enfermeira que morreu estava grávida e abortou, infectando todas as quatro enfermeiras que auxiliavam no parto. Todas as quatro morreram.

"Tem horas em que eu digo, 'Oh, meu Deus, eu devia ter optado por ser secretária'", disse Sellu. Mas seu trabalho como curandeira, ela disse, "é o chamado de Deus".

O hospital em Kenema é um lugar diferente agora. Nas últimas semanas, com ajuda internacional, um sistema mais rigoroso de triagem e isolamento dos pacientes com ebola foi instituído. A confiança entre o quadro de enfermagem foi restaurada.

Do lado de fora do hospital, elas continuam enfrentando estigma. Algumas das enfermeiras de Sellu contaram sobre terem sido abandonadas por seus maridos e de vizinhos as evitando. Uma enfermeira disse que voltou para casa e encontrou seus pertences em malas na calçada, e que seu marido a alertou a manter distância. Outra enfermeira, à procura de um lugar para ficar, mentiu ao senhorio, dizendo que era estudante.

"Quando você se encontra com eles, eles se esquivam dessa forma e não tocam em você", disse Veronica Tucker, uma enfermeira que sobreviveu à infecção de ebola, fazendo um pequeno movimento para demonstrar sua experiência nas ruas de Kenema.

A epidemia prossegue. Trabalhadores de ajuda humanitária internacional dizem que os números oficiais –aproximadamente 2.615 casos e 1.427 mortes na Guiné, Libéria, Nigéria e Serra Leoa– são quase certamente muito abaixo do número real de contágios e mortes.

Mas Sellu tem algum motivo para otimismo. Ela está vendo o número de pacientes com ebola diminuir. E ela e suas enfermeiras não estão mais sozinhas na luta.

"Algumas foram embora, mas nós permanecemos", disse uma enfermeira, Nancy Yoko. "Nós continuamos vindo. Nós nunca partiremos." Sellu mandou os visitantes embora, colocou seu traje e se preparou para trabalhar. "Com a graça de Deus, vai passar",  disse.