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O terror pelos olhos dos inocentes: as crianças que presenciaram o atentado em Nice

14.jul.2016 - Uma boneca ficou ao lado de um corpo após um caminhão atropelar uma multidão durante celebração da Queda da Bastilha, maior feriado nacional francês, no centro de Nice, na Riviera Francesa - Eric Gaillard/Reuters
14.jul.2016 - Uma boneca ficou ao lado de um corpo após um caminhão atropelar uma multidão durante celebração da Queda da Bastilha, maior feriado nacional francês, no centro de Nice, na Riviera Francesa Imagem: Eric Gaillard/Reuters

Alissa J. Rubin e Lilia Blaise

19/07/2016 06h00

Foi o primeiro e último show de fogos de artifício visto por Yanis Coviaux, de 4 anos e meio, na cidade balneário de Nice. Ele morreu na chacina na noite da última quinta-feira (14). Assim como Brodie Copeland, 11, dos EUA, que estava de visita.

Haroun el Kamel, 12, sobreviveu mas talvez nunca mais veja fogos de artifício da mesma maneira. Também havia Laura Borla, 14, que veio ver os fogos com sua irmã gêmea e sua mãe, mas tinha se afastado delas. Mais de dois dias depois, sua família ainda a procurava.

O motorista que atirou um caminhão contra a multidão no final dos fogos do Dia da Bastilha em Nice (sul da França) matou pelo menos 84 pessoas e feriu outras centenas. O trauma foi exacerbado pela presença de um grande número de crianças, cujas mortes, ferimentos e cicatrizes psicológicas deram a esse ataque -- assim como ao de março, que matou muitas crianças em um parque no Paquistão, ou à recente chacina de famílias que comemoravam o fim do Ramadã em Bagdá -- uma sensação especialmente brutal e salientaram sua crueldade indiscriminada.

Pelo menos dez crianças foram mortas na noite de quinta-feira, e ao menos 35 foram tratadas de ferimentos nos hospitais de Nice. Outras foram separadas de seus pais na confusão e algumas sem dúvida viram e ouviram coisas que poderão carregar consigo durante muito tempo.

Ninguém que estava na beira-mar naquela noite poderia imaginar um final tão horrível. Assistir aos fogos no 14 de Julho é um ritual familiar anual em Nice, tempo de fazer piquenique na praia e, quando a praia está cheia demais, espalhar toalhas de mesa na "ilha" na avenida à beira-mar chamada há mais de 150 anos de Promenade des Anglais [Passeio dos Ingleses]. De lá, as pessoas têm uma bela vista do mar e do espetáculo de fogos.

"Você tem de levar seus filhos, ou terá de pagar durante o ano inteiro -- todos os amigos deles estão lá", disse Raja el Kamel, 43, mãe de Haroun, que estava com ele e uma amiga da Suécia com seus dois filhos nas comemorações.

Em uma cidade que adora uma festa, os fogos são especialmente amados porque toda a comunidade participa da comemoração: cristãos e muçulmanos, religiosos e seculares, mas franceses acima de tudo. A presença de um grande número de turistas dá à noite uma sensação ainda mais festiva.

Para Yanis, de 4 anos e meio, e seus pais, Mickael e Samira Coviaux, a noite era uma estreia. Os pais, ambos motoristas de caminhão, vivem em Grenoble, e era a primeira vez que viam os fogos sobre o Mediterrâneo em família, disse a tia de Yanis, Anais Coviaux, estudante de direito em Paris que veio dar apoio a seu irmão e sua cunhada depois da morte de Yanis.

"As crianças estavam brincando de costas para a avenida", disse ela. "Só escutaram o caminhão um segundo antes de ele as atingir. Ele subiu na calçada e atropelou Yanis e a mãe de outra criança", que também morreu.

Não havia primeiros-socorros nas proximidades. Finalmente, Mickael Coviaux pegou seu filho e começou a andar com ele até encontrar uma pessoa com um carro que concordou em levá-los ao hospital. Quando passaram por bombeiros, os pararam e pediram que tentassem reanimar o menino. Mas ele estava morto.

"Ele era o único neto dos meus pais, o único neto da família", disse Anais Coviaux em voz baixa. Ela explicou que seu irmão e a mulher estavam abalados demais para falar. "Yanis amava as pessoas", disse ela. "Ele gostava especialmente dos domingos, quando toda a família se reunia, e dizia: 'Mamie e Papi, vamos fazer uma festa'."

Mais tarde. Mickael Coviaux disse em um e-mail que "cada pessoa que Yanis conheceu em sua curta vida se apaixonou por ele".

No sábado, toda a família se reuniu no passeio à beira-mar para ver a última vista que ele teve. "Era importante para nós vir ao lugar onde ele morreu para prestar um tributo", disse Anais Coviaux, "porque não suportávamos nos despedir dele. Deixamos uma foto dele e flores."

Um enfermeiro no pronto-socorro do Hospital Pasteur, Mejdi Chemakhi, cuidou de várias crianças, inclusive um menino e uma menina que foram levados sem seus pais. O menino tinha 4 anos, disse Chemakhi, e a menina 6.

O enfermeiro contou que o menino falava em tom monótono, parecendo estar em choque. "Minha mãe morreu, mas meu pai ainda está vivo", disse o menino disse várias vezes. Sem expressão, a criança finalmente disse: "Estou cansado, preciso dormir, não tenho roupas", recordou Chemakhi.
"Então eu o abracei e tentei consolá-lo", disse ele. "Você não sabe o que mais pode fazer nessas situações. É realmente importante fazê-los sentir-se seguros."

Mais tarde naquela noite, um homem ferido foi levado ao hospital e disse a Chemakhi que tinha perdido sua mulher e não encontrava seus filhos, um menino e uma menina. Chemakhi então percebeu que os três eram uma família e ajudou a reuni-los.

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AFP

Na Promenade des Anglais no sábado havia lembranças de flores e bilhetes, às vezes a poucos centímetros de distância, marcando o lugar onde as pessoas haviam morrido.

Algumas mães e pais que não estavam perto dos fogos levaram seus filhos para ver esses memoriais como uma maneira de manifestar união com a comunidade e desafio aos terroristas.

Nour Hamila, que nasceu em Nice e se converteu ao islamismo, fez questão de levar seus três filhos, de 8, 5 e 3 anos. "Eu disse a eles para não ter medo porque é isso que os terroristas querem; temos de nos apoiar", disse ela enquanto seu filho de 5 anos, Mohamed, depositava flores em um dos memoriais.

É mais difícil para as crianças que testemunharam a chacina.

Para Haroun, 12, o filho de Raja, o momento ficou gravado na mente. "Nós vimos de longe, o caminhão branco na noite escura", disse a mãe. E contou que pensou que o caminhão estava no lugar errado, porque a rua estava fechada para o tráfego.

Seu filho e os filhos de sua amiga, de 12 e 9 anos, estavam brincando e rindo. Então o motorista acelerou e começou e fazer ziguezague na avenida, "mergulhando sobre as pessoas", disse ela.

De alguma forma ela se jogou com seu filho na calçada quando o caminhão se aproximou. Então ele passou, e ela se lembra de seu filho dizendo: "Mãe, mãe, você precisa vir ajudar as pessoas".

Ela olhou para a rua e reconheceu uma vizinha ajoelhada ao lado de seu marido, gemendo seu nome. Raja disse a seu filho para ir com a amiga dela e as outras crianças.

Tudo estava silencioso. "Havia apenas um vento terrível", disse ela.

"À esquerda você via corpos; você olhava à direita e via corpos; havia carrinhos de bebê e pessoas tentando salvar outras."

Depois de tentar confortar sua vizinha, Raja procurou seu filho, mas então a multidão estava correndo e foi o caos. Horas depois, quando encontrou o filho e o amigo, o menino disse: "Mamãe, você conseguiu salvar o homem?"

Raja respondeu que os serviços de emergência tinham vindo buscá-lo.

"Você sabe, as crianças não têm uma visão global", disse ela. "Ele viu todos aqueles cadáveres, mas para ele o que estava mais próximo tinha que ser salvo."

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