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Opinião: 'Tolerância zero' do sistema imigratório dos EUA tem de mudar

Seguranças parados diante de sapatos e brinquedos deixados para trás no Ponto de Entrada de Tornillo, no Texas, onde os filhos dos imigrantes sem visto foram mantidos após a separação dos pais, em junho - Brendan Smialowski/AFP
Seguranças parados diante de sapatos e brinquedos deixados para trás no Ponto de Entrada de Tornillo, no Texas, onde os filhos dos imigrantes sem visto foram mantidos após a separação dos pais, em junho Imagem: Brendan Smialowski/AFP

Laurene Powell Jobs*

25/12/2018 04h00

Fator de Mudança: A política de "tolerância zero" do governo Trump para a imigração, que exige que qualquer pessoa que atravesse a fronteira ilegalmente seja processada, resulta na separação de milhares de famílias.

O áudio entrou ao vivo às 15h51 do dia 18 de junho de 2018.

Obtido de uma fonte que estava arriscada a ser demitida por divulgá-lo e publicá-lo através da ONG de jornalismo investigativo ProPublica, a gravação registra dez crianças centro-americanas implorando aos agentes e funcionários do consulado em uma das unidades do Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteira.

Elas tinham sido separadas dos pais e familiares como parte da política de "tolerância zero" do governo Trump, que processa criminalmente toda pessoa que tenta cruzar a fronteira dos EUA com o México ilegalmente. O que se ouve são sete minutos e 47 segundos de choro, as palavras "mami" e "papá" repetidas vezes. Uma menina salvadorenha de seis anos implora que alguém ligue para a tia, cujo número de telefone ela sabe de cor.

A certa altura, acima da choradeira, ouve-se um patrulheiro fazendo piada. "Bom, pelo visto temos uma orquestra aqui. Só está faltando um maestro", comenta com voz sombria, em tom gelado.

Todos nós, de uma forma ou de outra, demonstramos ignorância em relação a muitos problemas do mundo. Às vezes, é simples falta de consciência do sofrimento à nossa volta; outras, preferimos ser ignorantes de propósito, escolhendo, por uma razão ou outra, negar ou ignorar uma realidade difícil ou dolorosa. Todos nós temos nossos motivos e nossos álibis.

Em certos momentos, porém, essa ignorância, qualquer que seja sua natureza, pode acabar destruída, atropelada por uma verdade tão indiscutível, por um som ou imagem tão arrebatadores, que não conseguimos tirá-los da mente, que dirá esquecê-los. É uma experiência tão forte que conseguimos alcançar o mais difícil, aquilo que políticos, analistas e marqueteiros passam a vida perseguindo: uma mudança na forma de encarar o mundo, uma verdadeira epifania ética.

Foi o que aconteceu quando o ProPublica publicou aquela gravação de sete minutos e 47 segundos.

Adan Galicia Lopez, 3 anos, reencontrou a mãe em Phoenix, em julho, depois de quatro meses de separação. Sob a política da "tolerância zero" de policiamento fronteiriço do governo Trump, milhares de crianças foram enviadas para centros de detenção muitas vezes localizados a milhares de quilômetros do local onde os pais estavam sendo processados criminalmente - Victor J. Blue/The New York Times - Victor J. Blue/The New York Times
Adan Galicia Lopez, 3 anos, reencontrou a mãe em Phoenix, em julho, depois de quatro meses de separação. Sob a política da "tolerância zero" de policiamento fronteiriço do governo Trump, milhares de crianças foram enviadas para centros de detenção muitas vezes localizados a milhares de quilômetros do local onde os pais estavam sendo processados criminalmente
Imagem: Victor J. Blue/The New York Times

Por quê? Por que toda e qualquer pessoa nesse planeta reage ao choro de uma criança. É inerente. Afinal, qual é o som mais primevo, mais doloroso, mais vívido, mais capaz de quebrar barreiras para nos conectar a algo mais profundo? Qual é o som que melhor consegue acabar com o mito perigoso do tribalismo e nos lembrar da verdade essencial de nossa humanidade comum?

Aquela gravação ? aqueles sete minutos e 47 segundos, além do destaque dado às crianças pelos jornalistas, a oposição pública, sem precedentes, de duas ex-primeiras-damas e uma verdadeira onda de condenação instintiva ? foi, na verdade, um lamento ouvido ao redor do mundo, uma faísca que aqueceu o debate sobre imigração, forçando sua conflagração. Do ponto de vida da justiça, esse fogo foi mais que bem-vindo.

Pesquisas feitas pelo Gallup em julho, no auge da crise da separação das famílias, revelaram que o povo norte-americano considerava a imigração o problema mais grave a afligir o país, sendo apenas a segunda vez que encabeçou a lista na história do instituto. Enquetes posteriores também mostraram que a oposição à política de separação familiar tinha conseguido o que parecia impossível no nosso clima político tão polarizado: superou os limites partidários, tornando-se motivo de revolta de republicanos e democratas.

Dois dias depois da divulgação, o próprio Trump desmoronou sob pressão, instaurando um decreto que comprometia o governo federal, pelo menos na maioria dos casos, a manter as famílias detidas juntas, enquanto perpetuava ? e criava ? outros problemas.

Em uma semana, um juiz federal exigiu que o governo reunisse as famílias separadas ? mas a decisão não acabou com o sofrimento. Enquanto escrevo este artigo, 140 crianças, inclusive algumas com menos de cinco anos, continuam longe de seus pais. Infelizmente, relatos indicam que inúmeras famílias continuam separadas. Pelo menos uma, Mariee, uma garotinha guatemalteca de 1,5 ano, morreu depois de adoecer sob custódia ? e mesmo aquelas que voltaram para seus familiares podem sofrer consequências de longo prazo em decorrência do trauma que sofreram.

Enquanto isso, o governo Trump e seus legalistas no Congresso não mostram a mínima intenção de mudar de ideia em relação ao plano inicial de reduzir a imigração, legal ou não, e ao desmantelamento das tradições dos EUA enquanto refúgio para os exaustos, os pobres e as massas.

É necessário, então, em 2019 e nos anos seguintes, não só a reversão de um plano de imigração tão contrário aos mais elevados ideais do país, nem o fim de uma retórica de ódio e desagregadora usada em nome desse sentimento. Precisamos de mais ? de uma mudança básica, uma capacidade aumentada de nossa capacidade de entendimento moral.

Grupo de crianças separadas dos pais depois da travessia da fronteira joga futebol em uma quadra de basquete em Manhattanville Houses, no Harlem, em julho, antes de ser levado à filial do Cayuga Center, na West 125th St. O centro é a maior das dez agências de assistência social na região da Grande Nova York a cuidar dos pequenos estrangeiros - Dave Sanders para The New York Times - Dave Sanders para The New York Times
Grupo de crianças separadas dos pais depois da travessia da fronteira joga futebol em uma quadra de basquete em Manhattanville Houses, no Harlem, em julho, antes de ser levado à filial do Cayuga Center, na West 125th St. O centro é a maior das dez agências de assistência social na região da Grande Nova York a cuidar dos pequenos estrangeiros
Imagem: Dave Sanders para The New York Times

"Estou aterrorizado com a apatia moral, a morte do coração que está atingindo o meu país", lamentou uma vez James Baldwin sobre outra crise de consciência norte-americana, nos anos 60.

Nós também temos que temer a apatia face à nossa própria crise de consciência. Os imigrantes que estão chegando legalmente aos EUA hoje são semelhantes em praticamente todos os aspectos àqueles que chegaram ao país, e contribuíram tanto com seu sucesso, desde o início.

Por que não conseguimos perceber que esses recém-chegados possuem exatamente os mesmos valores e atributos ? perseverança, autossuficiência e uma determinação inspiradora de dar aos filhos a chance de uma vida melhor ? que sempre valorizamos e classificamos como essencialmente norte-americanos?

A questão fundamental que devemos encarar no debate da questão da imigração neste país não é, nem nunca foi, sobre um determinado grupo de estrangeiros.

A pergunta que devemos nos fazer não é "Quem são eles?", mas sim "Quem somos nós?".

*Laurene Powell Jobs é fundadora da Emerson Collective, organização que defende mudanças sociais.

Este artigo faz parte da série Fator de Mudança: Pauta Global 2019 de fim de ano que inclui artigos de opinião, fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2018 que repercutirão não só em 2019, mas nos anos seguintes.