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Briga entre orgânicos e transgênicos trava preservação ambiental, diz suíço

Placa indica cultivo de transgênicos no Centro de Tecnologia Canavieira, em Piracicaba, no interior de São Paulo. Botânico suíço defende que orgânicos e transgênicos podem conviver em harmonia no campo e, ainda, preservar o meio ambiente - Rodrigo Capote/Folhapress
Placa indica cultivo de transgênicos no Centro de Tecnologia Canavieira, em Piracicaba, no interior de São Paulo. Botânico suíço defende que orgânicos e transgênicos podem conviver em harmonia no campo e, ainda, preservar o meio ambiente Imagem: Rodrigo Capote/Folhapress

Do UOL, em São Paulo

04/11/2013 06h00

A "disputa ideológica" entre os defensores da agricultura orgânica e os simpatizantes dos transgênicos emperra a preservação ambiental, defende o botânico Klaus Ammann. O pesquisador suíço afirma que a biotecnologia é uma importante ferramenta para a conservação da biodiversidade, do mesmo modo que é uma saída para a produção sustentável de alimentos.

"Os transgênicos não são uma ameaça ao meio ambiente, mas uma ferramenta para protegê-lo. Com a maior produtividade e a racionalização no uso de defensivos químicos no campo, há mais chance de preservar a biodiversidade com os OGMs" (Organismo Geneticamente Modificado).

Em visita ao Brasil no mês passado, Ammann afirmou em entrevista ao UOL que o país "tem uma atitude progressiva em relação à ciência” que o coloca em destaque no comércio internacional de produtos agrícolas. E também em posição “para ajudar os países europeus a enfrentar a crise".

"Sendo suíço, digo que as pessoas no meu país são bastante fechadas para novos conceitos, atitude que dificulta a inovação. No Brasil, eu encontro muitas pessoas abertas ao novo, dispostas a falar de futuras perspectivas. Isso é muito positivo." Leia, abaixo, trechos da conversa.

UOL - Qual é o futuro da biotecnologia na lavoura? Ou os avanços ainda estão restritos aos laboratórios?

Klaus Ammann - Existem ótimos exemplos de avanços, inclusive no Brasil. O novo feijão resistente ao vírus do mosaico dourado, desenvolvido pela Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], já está aprovado pela CTNBio [órgão federal que analisa pedidos de novas sementes] e deve chegar ao mercado nas próximas safras. Outros países também pesquisam variedades de arroz e trigo resistentes à seca e a inundações, por exemplo. Esses transgênicos já estão em fase de testes e podem ser liberados em poucos anos.

Além disso, o arroz dourado encontra-se em um estágio avançado de aprovação nas Filipinas. O OGM (Organismo Geneticamente Modificado) ganhou este nome graças à sua cor amarelada proveniente dos altos níveis de betacaroteno, precursor da vitamina A. Esse alimento é a principal fonte de nutrientes das famílias de vários países do sudeste asiático e a carência dessa vitamina é a principal causa de cegueira em crianças. Já temos os testes de campo concluídos e outros ainda estão sendo realizados.

E a que passo estamos de produzir alimentos saborosos sem deixar de serem saudáveis? Como a ciência pode ajudar nisso?

O projeto HarvestPlus já desenvolveu vários cultivos enriquecidos com nutrientes como zinco e vitaminas que estão quase prontos para lançamento. A biotecnologia já desenvolveu diversos alimentos com maiores quantidades de nutrientes. Alguns exemplos são o feijão e sorgo enriquecidos com ferro; mandioca, batata-doce e milho enriquecidos com vitamina A; além de arroz e trigo enriquecidos com zinco. Todos esses produtos estão prestes a serem lançados e representam grande benefício para a população. Infelizmente ainda há receio, e, por conta disso, recai sobre esses alimentos um excesso de regulamentação.

Como essa produção do futuro pode ajudar a erradicar a fome mundial sem prejudicar a biodiversidade? 

Esse é, de fato, um grande desafio para a agricultura, especialmente àquela realizada com métodos pouco eficientes. Mas há vários fatores que precisam ser levados em conta. A agricultura pode ser uma ameaça à biodiversidade, seja ela transgênica ou não.

Entretanto, com a maior produtividade e a racionalização no uso de defensivos químicos conseguidos graças à adoção de transgênicos no campo, há mais chance de preservar a biodiversidade com os OGM. Assim, os transgênicos não são uma ameaça ao meio ambiente, e sim uma ferramenta para protegê-lo. Então, nós deveríamos abolir essa disputa ideológica entre agricultura orgânica e a agricultura baseada em biotecnologia. São estratégias diferentes que podem conviver juntas, desde que haja compreensão mútua sobre os seus respectivos princípios.

Não se sustenta a posição de que os transgênicos são uma ameaça à agricultura orgânica. Tampouco é aceitável classificar agricultores orgânicos como pessoas de pensamento retrógrado. O fato é que a agricultura mais produtiva e praticada em áreas menores é apenas uma das ferramentas para resolver a problemática da fome. É preciso reestruturar nossas fazendas, desenvolver estratégias cada vez mais amigáveis de interação com o meio ambiente e tornar a logística e a produção de energia mais eficientes.

Com relação à harmonização entre a agricultura biotecnológica e a preservação ambiental, em essência, eu diria que esse conceito tem como chave a priorização da biodiversidade na produção agrícola. Minha pesquisa faz uma abordagem mais abrangente desse tema.

Nessa lavoura do futuro haverá espaço para todos os cultivos, ou alguns serão banidos?

Há certamente espaço para todos os tipos de cultivos, desde que haja empenho em prol da coexistência e respeito ao conhecimento ancestral dos pequenos agricultores sobre as centenas de variedades crioulas (que têm características locais muito específicas) já existentes. Não é correto associar a expansão das culturas geneticamente modificadas à eventual redução da ocorrência dessas variedades. Eu acredito que a preservação das variedades crioulas depende de um trabalho de melhoramento genético voltado às necessidades dos agricultores que as utilizam e das localidades onde são plantadas.

Com a biotecnologia é possível introduzir também nessas variedades genes de interesse, para conferir resistência a herbicidas, pragas e, em um futuro próximo, melhorias nutricionais, resistência a estresses abióticos - como seca, solos salinos e inundações. Há espaço para todos os cultivos e todos os sistemas de produção no futuro.

O argumento da coexistência (entre cultivos convencionais e transgênicos) não ser possível já foi refutado por centenas de estudos que abordam a questão da transferência de pólen e dispersão de sementes. Enquanto se respeitar as distâncias regulamentares de plantio, não haverá problemas. A própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) não diferencia transgênicos e não-transgênicos em suas recomendações para a prática de uma agricultura sustentável. Seria tolice, portanto, barrar o uso de cultivos geneticamente modificados quanto eles têm se provado seguros.

Essa tecnologia pode melhorar, também, o desperdício de alimentos?

O desperdício de alimentos representa cerca de 15% de todo o problema, mas, sem dúvida, é relevante o bastante para que sua redução ou erradicação contribua para estratégias de combate à fome. Isso, no entanto, requer o envolvimento de diversos atores, a exemplo do setor varejista, da indústria de embalagens, da logística e dos consumidores, para a promoção de esforços conjuntos.

Na sua opinião, quais países ainda estão atrasados na questão da legislação sobre biossegurança? E como isso afeta a produção de alimentos e/ou científica mundial?

A situação é particularmente preocupante na Europa. A região tem uma legislação abrangente, moderna e voltada ao desenvolvimento de produtos e aplicações, a exemplo das legislações canadense, norte-americana e de alguns outros países. Mas, na prática, muitos países criam dificuldades à adoção da biotecnologia, o que, naturalmente, reduz os investimentos em pesquisas.

O desenvolvimento de variedades de soja e milho na Europa, por exemplo, está aproximadamente 50 anos atrasado em relação a outras partes do mundo. Isso obviamente não faz sentido. O consumidor europeu já se alimenta de produtos geneticamente modificados há anos, sem que uma única dor de cabeça tenha sido registrada. Por essa razão, alguns países como o Reino Unido consideram seriamente rever a regulamentação e priorizar a ciência.

O que você conhece da Lei de Biossegurança brasileira? O Paraná, maior produtor de milho do país, já questionou, anos atrás, a eficácia e o controle da lei nos cultivos transgênicos.

O que posso dizer é que a legislação brasileira é eficiente o bastante para possibilitar o progresso científico. Citei o feijão resistente ao mosaico dourado, desenvolvido integralmente por uma instituição pública de pesquisa, o que ilustra bem o avanço do país no que se refere à ciência e à inovação.

Poderia falar mais sobre sua visita ao país? Que papel o Brasil tem nos seus estudos?

Para mim, o Brasil tem uma atitude progressiva em relação à ciência e isso faz com que o país alcance grande sucesso no âmbito do comércio internacional. O Brasil, assim como a Índia, especificamente no mercado de algodão, é hoje um grande exportador de produtos agrícolas. E, economicamente, está em posição até de ajudar países europeus a enfrentar a crise. Essa atitude, de olhar para frente em relação à ciência, é o que eu mais admiro no seu país.

Minha visita ao Brasil nesta ocasião tem como objetivo a participação em congressos científicos. Mas adoraria um dia ter a oportunidade de realizar pesquisas científicas aqui. O Brasil é a "meca" da biodiversidade, com o maior número de espécies vegetais do mundo e valiosos ecossistemas, como a floresta Amazônica e o Cerrado, para nomear apenas alguns. A experiência mais próxima que tenho com flora tropical foi na Jamaica, onde lecionei anos atrás. Além disso, participei de um projeto para biofortificação de variedades de Sorgo na África, cujo resultado será publicado em breve num livro pela editora Springer. Mas ainda espero ter a oportunidade de pesquisar no Brasil.

Cientistas apresentaram este ano a carne produzida em laboratório. Críticos que provaram o "hambúrguer artificial" questionaram mais o preço (cerca de R$ 750 mil) do que o sabor do alimento. Como baratear o custo dos avanços da biologia molecular rapidamente?

Com toda franqueza, eu não diria que, no futuro, carne será produzida por meios moleculares. Ao que me parece, isso soa mais como um exercício de aplicação da biotecnologia do que como uma alternativa viável para a produção de alimentos. Esse tipo de pesquisa, na minha opinião, deveria ser restrita a propósitos médicos, como a produção de órgãos e tecidos. Acredito em um futuro bastante promissor para essas aplicações, desde que seriamente amparada por padrões éticos e sustentáveis. 

Sobre o custo da pesquisa científica, graças à evolução tecnológica, temos assistido a uma redução drástica nos custos de novos desenvolvimentos em biotecnologia. Como exemplo, o sequenciamento de genomas, que no início levava anos para ser concluído e era muito caro, hoje demanda alguns dias e já está bem mais barato. Em um futuro próximo, talvez esse mapeamento leve ainda menos tempo e custe menos. Os métodos de transferência de genes também estão cada vez mais baratos e precisos. Isso, com certeza, vai levar a novas descobertas, com uma velocidade cada vez maior e à consequente redução de custos.

Será possível cruzar células vegetais com a de animais, ou isso só vai figurar entre as lendárias brincadeiras científicas?

A brincadeira do "boimate" feita por uma revista científica na década de 1980 foi importante para chamar a atenção das pessoas para temas complexos como melhoramento genético e a biologia molecular. Há ainda muitas pessoas que acreditam que os alimentos não transgênicos não possuem genes, por exemplo.

Pode levar algum tempo até que a sociedade confie plenamente na biotecnologia, assim como foi difícil no início para as pessoas confiarem em automóveis, fornos de micro-ondas e até nos celulares, equipamentos sem os quais não sabemos mais viver. Porém, com a biotecnologia, não se trata de usá-la, mas sim de ingeri-la, torná-la parte da alimentação.

Alguns críticos aos OGM dizem que as alterações genéticas dos alimentos podem ser absorvidas por mamíferos, passando a regular o organismo do animal. 

Este argumento não tem nenhum sentido. Há milhares de anos nos alimentamos de plantas e animais sem que, contudo, nossos corpos tenham sido afetados pelo DNA contido neles. E não importa se o DNA provém de um organismo convencional ou de um geneticamente modificado, nosso corpo tem uma série de mecanismos para não ser afetado por nenhum dos tipos de DNA que ingerimos diariamente.

As pesquisas que insinuam o contrário não são aceitas pela comunidade científica internacional. O polêmico estudo canadense de Aris (que relaciona risco fetal ao consumo de transgênicos) sobre os efeitos das toxinas Bt no sangue humano foi baseado em métodos de análise incorretos.

Outro grande escândalo foi o caso Séralini. O cientista francês ainda não publicou os dados originais do estudo que relaciona o consumo de transgênicos ao surgimento de tumores em ratos. Aliás, os ratos em questão são de uma espécie que naturalmente desenvolve tumores em 70% a 80% dos casos, independentemente de sua alimentação. Os dois estudos são rejeitados por praticamente todos os cientistas moleculares do mundo.

Infelizmente é recorrente que opositores à biotecnologia tropecem em conclusões precipitadas. Entidades como a OMS (Organização Mundial da Saúde), a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e a Academia de Ciências do Vaticano, entre outras, já se manifestaram em apoio aos alimentos geneticamente modificados, alegando que eles são tão seguros quanto suas variedades convencionais.