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Coronavírus no esgoto revela deficiências do saneamento brasileiro

Esgoto a céu aberto em Bayeux, na Paraíba  - Francisco França/UOL
Esgoto a céu aberto em Bayeux, na Paraíba
Imagem: Francisco França/UOL

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

12/07/2020 04h00

As recentes pesquisas que constataram a presença do novo coronavírus nos esgotos em ao menos dois estados revelam deficiências do saneamento básico no país, onde atualmente pelo menos 48% das pessoas vivem sem tratamento de água adequado. As mudanças no marco do saneamento prometem a universalização dos serviços até 2033, com investimentos de até R$ 700 bilhões, mas não deixam claro como e quando virá esse dinheiro.

Em abril, a Fiocruz encontrou traços do vírus nos esgotos de Niterói, cidade fluminense. Em maio, foi a vez da ANA (Agência Nacional de Águas) —que agora será a agência responsável por regular o saneamento no país— encontrar o coronavírus em Belo Horizonte, em parceria com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e com a Secretaria de Saúde do Estado de Minas.

"É uma ação científica de laboratório, mas com alto impacto na saúde pública. Você pode entender as ações, por exemplo, as enchentes. Quando se tem uma rede de esgoto adequada, o impacto desse tipo de fenômeno é muito menor", diz o pesquisador José Paulo Gagliardi Leite, diretor do Instituto Oswaldo Cruz, órgão responsável pelo estudo em Niterói.

As pesquisas poderiam orientar não só políticas de saneamento, mas também aquelas voltadas à contenção da covid-19.

Durante a pesquisa, a ANA mostrou, por meio das análises do esgoto, por exemplo, que em determinados momentos a subnotificação chegava a 20 vezes o número de casos oficiais em BH.

"Houve uma evolução recente no campo chamado epidemiologia do esgoto. Por meio do esgoto, você pode fazer um mapeamento das doenças, incluindo a covid-19. (...) Do ponto de vista científico, é uma ferramenta de subsídio para uma decisão eventualmente política", diz à reportagem Marcelo Miki, Coordenador Geral da CTTE (Câmara Temática de Tratamento de Esgoto) da ABES (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária Ambiental).

Os estudiosos que formulam essas análises, no entanto, argumentam que, para conseguir monitorar de forma consistente as fezes das pessoas que podem estar contaminadas, e assim ajudar na contabilização dos casos, todas as cidades do país deveriam ter um sistema de esgoto que atenda a grande maioria da população.

Dessa forma, doenças que são transmitidas pelos esgotos, caso da hepatite A, poderiam ser monitoradas e contidas. Não há qualquer indicação científica de que o vírus Sars-CoV-2 possa contaminar as pessoas pela água (leia mais abaixo).

"As estimativas [de contaminação] têm como base as cargas virais que são encontradas nas amostras de esgoto, registrando que nas últimas semanas em 100% das amostras coletadas nós temos a detecção da presença do novo coronavírus. É possível acompanhar também as tendências da circulação, da regionalização do vírus, explica Sérgio Ayrimoraes, superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos da ANA.

Hoje, temos uma maior concentração do vírus e da população infectada em áreas que são mais vulneráveis socialmente

Caso houvesse um amplo atendimento de saneamento nos municípios, pesquisas como a da ANA e da Fiocruz poderiam auxiliar na detecção antecipada da ocorrência do vírus em uma determinada região. A agência chegou a fazer essa estimativa, mas limitada à capital mineira e à cidade de Contagem.

Durante a pesquisa, a ANA mostrou, por meio das análises do esgoto, que em determinados momentos a subnotificação chegava a 20 vezes o número de casos oficiais em BH.

É nesse ponto (melhoria do saneamento dos municípios, principalmente os menores) que as mudanças no marco do saneamento tentam interferir, mas não há consenso de que os mecanismos criados por meio da nova lei serão eficientes.

O texto traz duas grandes mudanças na forma de gestão do saneamento básico no país: os contratos de programa, acordos firmados diretamente entre os municípios e as empresas estaduais de saneamento, serão extintos; os municípios poderão formar blocos para negociar licitações, sem obrigatoriedade de adesão.

Sem os contratos de programa, restam aos municípios implementar o saneamento por conta própria —ponto praticamente excluído das discussões, posto que boa parte das cidades enfrenta situação fiscal ruim— ou fazer uma licitação. Dessa forma, as mudanças no marco do saneamento pavimentaram o caminho para que as empresas privadas sejam privilegiadas para gerir o serviço nos municípios.

Para além da desconfiança em relação à nova normativa, o marco será cobrado também pela desigualdade de acesso ao saneamento no Brasil. Enquanto no Sudeste 50,09% do esgoto é tratado, no Norte e Nordeste os índices são de 21,7% e 36,24%, respectivamente.

ANA sem estrutura e cidades pequenas

Outra crítica é o fato de a ANA agora ser responsável como reguladora dos processos de implementação do saneamento nos municípios. Atuando como gestora dos rios e águas do país, a agência agora terá de adquirir conhecimento, pessoal e estrutura para lidar com a rede de água e esgoto nos estados e municípios.

A decisão de colocar a ANA como principal reguladora é lógica, dizem os especialistas entrevistados pela reportagem, mas ela terá de se reestruturar para poder exercer essa função.

Segundo Carlos Motta, Superintendente adjunto de apoio ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos da ANA, a entidade "já está se reestruturando".

"Pela lei a gente vai contar com uma nova estrutura organizacional, novo organograma, potencial de trazer novas pessoas. Nós já fizemos um processo seletivo no governo federal para virem para a ANA e assim que a lei for sancionada a gente vai dar início a esse processo. A estrutura física já está montada, com salas e computadores esperando para começarmos a atuar."

À Folha, a diretora-geral Christianne Dias afirmou que pediu ao governo 26 cargos comissionados, 40 servidores remanejados e a realização de um concurso para contratar outros 100. "Hoje temos uma estrutura bastante engessada, não podemos contratar nem consultoria", disse ela no final de junho.

"A médio prazo, vamos cobrar para que a ANA tenha estrutura e seus técnicos que têm alta capacidade em recurso hídrico tomem conhecimento do que é o saneamento e como podem ser feitas as políticas públicas", diz o engenheiro Roberval Tavares de Souza, presidente da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental).

Souza, que junto à Abes fez campanha contrária ao marco, disse que agora, independentemente das divergências, "vai cumprir a lei". Ele aponta, no entanto, que o marco deve aprofundar a desigualdade entre os municípios menores e as capitais. Fatores como negligência às pequenas cidades e aumento da tarifa de água e esgoto nesses locais devem ocorrer a médio e longo prazo.

Outra crítica é em relação aos blocos de municípios —as cidades poderão formar grupos para negociar as licitações, supostamente envolvendo cidades menores com capitais.

"Qual seria a vantagem para Campinas, por exemplo, entrar em um bloco de municípios que pega Hortolândia, Valinhos? O que ela ganharia com isso? É bem questionável esse ponto dos blocos de municípios", diz o engenheiro Marcelo Miki.

Esgoto transmite o novo coronavírus?

Não há qualquer evidência científica de que exista a transmissão fecal-oral do novo coronavírus. O Sars-Cov-2 possui uma espécie de envelope necessário para contaminar células humanas. Como é sensível a ambientes inóspitos, o vírus perde esse envelope nos esgotos e, consequentemente, sua capacidade de contaminação.

Artigos científicos, como um publicado pelos pesquisadores Léo Heller, César Mota e Dirceu Greco na "Science of The Total Environment", reforçam que não há conclusões sobre a transmissão da doença pela água.

"É uma grande pergunta que ainda não foi respondida. Para comprovar essa contaminação [do vírus presente nos esgotos], precisamos de um conjunto de pesquisas para se pensar como seria essa transmissão fecal-oral. Já existem pesquisas que mostram o vírus viável nas fezes", disse Heller ao UOL em maio. Ele é relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o direito à água e ao saneamento.

Heller cita três possibilidades de contaminação partindo do esgoto:

  • O coronavírus presente nas fezes contamina a água com que as pessoas têm contato, ou
  • O esgoto ou as fezes contaminadas, de alguma maneira, atingem determinada superfície --e o contato com ela pode passar o vírus
  • Transmissão por vetores (insetos, por exemplo, hipótese para a qual ainda não há confirmações)