Nunca fui a Dubai, admito; mas nasci e me criaram em Caruaru, no agreste pernambucano, uma cidade que era símbolo do racionamento de água encanada (isso antes da sonhada barragem de Jucazinho).
Feito o esclarecimento, volto à realidade de quem morou por 18 anos no semiárido* e sempre teve o tempo do banho regulado pelos pais --o medo era faltar água na caixa e precisarmos entrar no banho a balde.
Há 12 anos escrevo para o UOL. Nesse período, me acostumei a ouvir personagens da seca. Não só os que sofrem com ela, mas pesquisadores de universidades, de centros independentes e de associações e sindicatos.
Relatei planos e promessas incríveis, vindas de fora; e elas parecem ter voltado com tudo nos últimos anos —afinal, como "roubar" os votos do PT para presidente nesse reduto onde ele fez 1 milhão de cisternas?
Não é difícil entender que a seca é um fenômeno natural: não se combate porque não há solução (ou alguém já viu plano para parar a neve do Alasca?). Mas há um verdadeiro fetiche em comparar e buscar a solução em terras áridas de Dubai ou de Israel.
Como diz um conhecido ditado nas bancas de cá: o maior problema do sertão é a cerca, não é a seca.
Quem é de fora adora perguntar: "mas por que nunca resolveram o problema da seca?". Nada de errado na questão. Mas, quando vem de políticos "forasteiros" buscando votos —e que se averbam detentores de uma solução importada—, isso vira um problema.
Primeiro porque despreza todo o conhecimento e as soluções possíveis e já existentes na região. Segundo porque, ao desconhecer a realidade e excluir do debate quem vive nela, costuma não dar certo no final.
Na segunda-feira, o tema da seca voltou à tona com o presidenciável João Doria, que perguntou quem tinha ido a Dubai (afinal, quem nunca?!) em uma coletiva na Câmara de Vereadores de Guarabira (PB).
A falta de conhecimento (e um pouco de bom senso) sobre o sertão e a seca não é novidade para ele, que, como presidente da Embratur, em 1987, sugeriu visitas turísticas para conhecer áreas castigadas pela estiagem.
Aliás, dia desses, assistindo a um jogo de futebol, um narrador da maior emissora do país comemorou quando a chuva caiu em Maceió, dizendo que ela é "sempre motivo de alegria por aí". Detalhe: a capital alagoana fica no litoral e não sofre pela falta, mas sim pelo excesso de chuva --que em muitos anos causam calamidade e mortes.
Mas diria que o problema maior não está nem nesse histórico desconhecimento geográfico, mas na insistência política (quase sempre de não nordestinos) em trazer planos "enlatados".
Uma das melhores respostas a Doria veio pelo coordenador da ASA (Articulação do Semiárido), Alexandre Pires, que escreveu uma carta para o governador de São Paulo mostrando que as verdadeiras soluções já estão em nosso solo e que o problema na região está muito mais na desigualdade social do que na irregularidade de chuvas.
O presidente Jair Bolsonaro não ficou atrás e elegeu-se prometendo importar projetos tecnológicos de Israel. De nada adiantou a comunidade acadêmica e científica mostrar a ele que já dominamos —e fazemos bem!— a dessalinização há décadas, inclusive pelo DNOCS (Departamento Nacional de Obras de Combate à Seca). E que bom que não precisamos de muitos bilhões de reais para trazer água do mar.
Em visita ao Brasil, em 2019, o chefe do setor de Israel me falou que dessalinizar aqui seria admitir o fracasso na gestão dos recursos hídricos, porque temos muito mais água do que eles.
Nem mesmo o governo Dilma Rousseff --sucessora de Lula, que tanto fez pelo semiárido-- passou sem cometer gafe. Em 2012, à revelia de todas as entidades e moradores, começou a comprar cisternas de plástico, em vez de fazer as tradicionais de alvenaria. Um erro sob várias esferas: mais caras, não contratam mão de obra local, deixam um cheiro na água e ainda, sob sol forte, podem derreter.
No final de 2016, foi a vez de Michel Temer, em Maceió, gritar que queria ser o maior presidente não nordestino a fazer pelo Nordeste. Disse isso ao prometer construir as antigas cisternas. Entretanto, nada: o que se viu na prática foi um corte de verbas de 94% para as obras nos últimos seis anos.
Tampouco adiantou, por exemplo, o Programa [federal] Cisternas, criado em 2003, ser reconhecido como uma referência mundial com prêmios como o Sementes (2009), da ONU (Organização das Nações Unidas), e o Future Policy Award (2017), da World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.
Falácias à parte, o Nordeste não precisa de soluções importadas, nem de heróis de fora para nos proteger. Não precisamos de tutela ou de líder para nos ensinar. Sabemos que são obras simples, como poços artesianos, açudes ou barragens subterrâneas, que ajudam na convivência. E são soluções baratas, existentes e com imenso impacto na vida de comunidades onde foram feitas.
A dessalinização não precisa ser importada de Dubai ou Israel --ela já é feita com tecnologia própria para tornar potável a água salobra do subsolo nordestino.
Projetos de irrigação são soluções eficientes para produção, e também não precisam vir de outro país. Temos áreas inteiras de sucesso com fruticultura em Pernambuco, Bahia, Sergipe...
O país precisa é olhar para soluções reais e recompor as verbas de programas como o das cisternas. Aliás, ela é o equipamento mais importante para convivência com a seca —são capazes de armazenar 16 mil litros de água da chuva ou dos carros-pipa, evitando que sertanejos andem quilômetros em busca de água (muitas vezes suja).
Enfim, estamos de novo em véspera de uma campanha eleitoral para Presidência. E as soluções brotam, como o mandacaru resiste no sertão. Mas o que todos aqui sabem é que o Nordeste não precisa de soluções forasteiras. O que falta hoje é dinheiro e, muitas vezes, vontade política para implantar soluções (que não precisamos criar).
Precisamos reconhecer que melhoramos! Prova disso é que entre 2012 e 2017 vivemos a mais longa seca da história, mas não vimos migrações em massa, como em 1915 e os campos de concentração do Ceará; roubos em rodovias ou saques que víamos em 1998.
Isso porque o país fez funcionar uma rede social com auxílio financeiro a criadores e produtores e carros-pipa abastecendo as dezenas de milhares de cisternas. Sofremos, passou. Mas novas secas vêm por aí.
A transposição do rio São Francisco já ajuda, mas não resolve. Muito ainda há a ser feito para atender todos os que moram na região: mais poços, açudes, barragens, cisternas. A solução para o Nordeste custa muito menos do que cobram ao povo: o que ela requer é mais esforço do que prometem e nos ouvir mais do que falar. Esse é o Brasil visto daqui.
* O semiárido é uma região que ocupa 12% do território nacional e compreende 1.262 municípios do Nordeste e no norte de Minas Gerais. É nessa área de baixo índice pluviométrico que vivem 28 milhões de brasileiros (38% deles em zonas rurais).
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